Se resolver usar meus textos para finalidades pessoais, por favor, tenha a delicadeza de citar a fonte.
O terror dos medos que não conhecia
Enquanto ela cantarolando alguma coisa ininteligível pintava mais um de seus desenhos misteriosos (só sei do que se tratam seus desenhos depois que ela calmamente os explica), me comprazia com uma xicara de café sentado no sofá. Conjecturava sobre o quanto aqueles momentos de paz e pureza singelas me faziam bem para a alma quando ela, largando o lápis e interrompendo o canto, me olhou com aqueles enormes olhos castanhos e revelando um temor súbito, perguntou:
- Tio, e se eu pegar dengue?
Ela tem uma habilidade única de me pegar de surpresa e naquela oportunidade não foi diferente.
- Querida, se você pegar dengue, e gente vai ao médico, ele recomenda uns remedinhos e você fica boa.
Levantou do chão onde se encontrava sentadinha (ela gosta de pintar sentada em uma almofada e apoiando seus papéis na mesa de centro) e correu pro meu colo.
- Estou com medo tio.
Era comovente perceber o quanto ela realmente estava assustada.
- Meu anjo, por que está tão assustada?
- Eu ouvi na televisão tio, que no Mato Grosso, morreu uma criança com dengue “trágico”. Eu não quero morrer tio.
- Calma meu bem, você não vai morrer – ok, todos nós um dia vamos, mas é claro que não abordaria a questão do ponto de vista lógico àquela altura com uma menininha assustada de seis anos.
- Mas tio, a criança do Mato Grosso morreu, o moço da televisão falou.
- Meu anjo, é trágico sim que ainda morram pessoas de dengue.
- Isso mesmo tio, dengue “trágico”. – deduzi que ela se referia ao dengue hemorrágico mas deixei pra lá, não por preguiça de explicar, mas para não assustá-la ainda mais.
- Querida, não fique com tanto medo, isso deve ter acontecido em algum lugar distante. 
- Mas tio, o mosquito voa. Ele pode ir onde quiser. – Resposta merecida ante argumento tão vazio, mas eu realmente não sabia o que dizer para acalmá-la e me sentindo um estupido pensei no desperdício que é a morte de uma criança onde quer que ela ocorra. As crianças deveriam ser nosso bem maior, o centro de todos os cuidados de que somos capazes. 
- É verdade querida, os mosquitos voam, mas me deixa te contar uma coisa, senta aqui. – Coloquei-a no sofá e me ajoelhei à sua frente para poder olhar nos seus olhinhos assustados. – O mosquito da dengue...
- Dengue “trágico” tio.
- Isso, da dengue “trágico”, ele vive em lugares onde exista água parada, como um lago ou no mato.
- Mato Grosso?
- Não amor, Mato Grosso é o nome de um lugar, o mato que eu falei é o mato da floresta.
- Ahhh. Então no Mato Grosso tem floresta né tio?
- É, tem bastante mato por lá, muito pasto também.
- O que é pasto tio?
- É um lugar onde as vaquinhas ficam.
- Tio, o mosquito não morde a vaca?
- Acho que sim querida.
- E a vaca não fica doente?
- De dengue não.
- Que sorte da vaca né tio?
- É sim. E, que tal você desenhar uma vaca agora?
- Tá. Vou desenhar uma vaca com um monte de mosquito voando perto dela.
Percebi que ela continuava incomodada com a dengue, mas havia se acalmado e tão logo se debruçou novamente sobre seus papéis, sorri aliviado. Ela então me olhou séria e disse.
- Você tá rindo por que o Mato Grosso é longe ou porque você não tem medo do mosquito?
E pensando no quanto qualquer coisa que pudesse mesmo que remotamente ameaçar sua inocência e bem estar se tornara potencialmente aterrorizante pra mim, respondi de pronto:
- Porque o Mato Grosso é longe querida.
 
A. Masini

Ratos venais; quem dá mais?

Mercantilizamos a saúde, a educação, o amor. E de forma destorcida “aprendemos” a nos virar com isso tudo. Trabalhamos cada vez mais a fim de pagar por coisas, que embora desnecessárias, se apresentam cada vez mais caras.

Com isso nos afastamos da família, dos amigos e dos prazeres; nos divertimos cada vez menos por que mercantilizamos a vida.

Mas tenho ainda a romântica esperança de que um dia a gente consiga aprender que com isso também se é possível lidar nos bastando mudar a postura diante das modas, valorizar as pessoas, as oportunidades e as coisas atribuindo-lhes valores outros que não os econômicos. Os valores do sorriso, da ternura e da paz de espirito. O valor do simples, do sublime (adoro essa palavra).

O problema é que diariamente somos bombardeados (com efeito tão letal aos nossos sonhos como teriam bombas verdadeiras sobre nossos corpos) com informações que nos compelem a “ver” tudo isso com absoluta naturalidade (a melhor escolha de palavras seria por “não ver a realidade") apesar do cansaço e da solidão que sentimos sem entender.

Essa falta de compreensão em perspectiva nos faz fechar os olhos para tudo que pareça não influir diretamente no nosso dia-a-dia. Contas, trânsito, trabalho e honorários ocupam quase cem por cento do nosso pensamento de forma que o pano de fundo desse enredo veloz, o contexto politico social, se percebido, não raro é deixado pra lá, posto de lado ante urgências que nem precisavam ser nossas.

Esse cenário não seria de todo catastrófico se a política cuja importância negamos, fosse aquela altruísta, meritória e honrada dos gregos antigos, mas não é, porque a mercantilização chegou também à política, ou melhor (digo, pior) aos “políticos” (que Platão me perdoe a heresia de assim chamar tais pessoas) de hoje, contrariamente aos tempos de ARENA e MDB, quando direita era direita e esquerda, esquerda; tempos em que a escolha partidária representava convicções e valores ideológicos, não são mais os valores éticos que movem os “eleitos” e sim mesquinharias como segundos de televisão com vistas a cargos transformados em moeda de troca; um ministério, uma secretaria, um cargo menor qualquer nem que seja o de “churrasqueiro, puxa-saco ou amante oficial”.

O que se vê, com rotina diária, é uma série de articulações e conchavos sem qualquer objetivo voltado aos eleitores (nós, trabalhadores de sonhos tolhidos), muito antes, senão exclusivamente, voltados à manutenção da ligadura visceral de cada um deles a uma das tantas tetas da ratazana em que transformaram a politica.

A pluralidade de “partidos”, alguns declaradamente venais, não permite dúvida quanto à sanha por benesses pessoais de seus componentes. Gente nefasta e despudorada; prostituída na concepção mais rasteira que a palavra possa alcançar. Gente que não reconhece gente por não gostar de gente. Gente que foi além da mercantilização da vida, mercantilizou a alma própria e a vida alheia; as nossas vidas.

A. Masini
Quanto tempo demora um ano?
 
Já era manhã havia algum tempo mas como o dia se apresentava nublado e alguma coisa frio, considerei o silencio típico dos domingos, naquele especialmente acentuado, e me decidi por permanecer na cama deixando os pensamentos ir e vir sem compromisso entre um cochilo e outro. Foi quando me dei conta de que o interfone tocava.
O atendi com alguma má vontade, quem poderia ser àquela hora de um domingo frio?
- Oi tio Johnnie. Você pode me levar até a praça um pouquinho?
Era Maria Julia, a filha encantadora da Rosana, minha vizinha folgada. Me chamava de tio quando queria me agradar, um tipo de “tio adotivo” como ela mesma solenemente me intitulou na noite em que jantamos juntos uma gostosa pizza de pepperoni enquanto sua mãe tirava um cliente da cadeia. Minha “irmã postiça” além de folgada é também advogada.
- Oi princesa. Onde está sua mãe?
- Está no computador fazendo uma “pedição”. Disse que não pode parar agora. Mas eu quero mesmo é ir com você.
- Bom, é que eu ainda não tomei café...
- Ah, não tem problema, a gente toma na padaria.
Ela era de fato encantadoramente esperta. Como dizer não?
- Ok, te encontro lá embaixo em dez minutos tudo bem? Mas antes me deixa falar com sua mãe.
- Ela está acenando lá da sala dizendo que tudo bem, que com você eu posso ir.
O que era verdade. Realmente pude ouvir ao fundo a voz de Rosana dizendo “se o João Marcelo vai te levar pode ir, ah, e é petição, não ‘pedição’ o que estou redigindo”. Rosana seria uma mulher das mais interessantes, não fosse tão chata.
Nos encontramos na portaria do prédio e embora Maria Julia estivesse sorridente, notei alguma coisa diferente em seus olhinhos.
- Tudo bem com você princesinha?
- Tudo bem sim Johnnie.
Chegamos à praça e ela se acomodou no balanço da árvore.
- Esse balanço que você fez ficou mesmo muito bom.
- Que bom que gostou.
- Quanto tempo dura um ano Johnnie?
A pergunta repentina me pegou absolutamente despreparado.
- Como?
- É. Quanto tempo demora para passar um ano?
- Bom, se contarmos em meses são doze, se contarmos em dias, são trezentos e sessenta e cinco.
- Não Johnnie, não quero saber dos dias, quero saber do tempo. – E fez um gesto com os bracinhos como quem desenha dois círculos grandes à sua frente.
Eu não conseguia entender a profundidade da pergunta e fazer nem a menor ideia do quê responder começava a me desesperar.
- Você quer saber quanto tem de esperar até que um ano tenha passado?
- Não, isso eu sei, vou ter que esperar um ano. O que quero saber é quanto é isso, quanto tempo é um ano.
- Querida, o que vai acontecer daqui a um ano?
- O meu pai vai voltar.
Aquilo ficava cada vez pior.
- Voltar para sua casa?
- Não Johnnie, para o Brasil.
- Ele foi viajar?
- Isso, foi trabalhar num outro país. Acho que chama Europa.
- Entendi. E só volta daqui a um ano. É isso?
- Isso. Eu quero saber quanto tempo tenho de esperar ele voltar nesse um ano.
Naquele momento pude entender que seu coraçãozinho estava aflito e seu desejo em verdade era o de saber por quanto tempo sentiria o desconforto da ausência do pai, a solidão de não tê-lo em sua companhia.
Me lembrei de quando eu mesmo era um menino um pouco mais velho do que ela é agora e a saudade que senti da Esther, uma menina linda vizinha da tia Lucia e que foi morar na Espanha. Lembrei-me da saudade que senti da Selminha quando me vim embora para São Paulo sabedor de que jamais a veria de novo. Mas, sobre tudo, lembrei-me da saudade, ainda hoje dolorida, que sinto da minha avó, do Seu Túlio e da própria tia Lucia.
Como agora, influenciado por minhas próprias experiências, dimensionar a ausência ou quantificar a solidão em termos compreensíveis para uma menininha de seis anos? Como demonstrar com modelos ou comparações que aquele vazio da presença do pai, a que ela chamou de“tempo que demora para passar”, não é quantificável ou sequer compreensível exceto para que o sente; e que quem o sente o faz de forma tão particular que o outro, por mais empático que seja, não consegue sequer imaginar?
- Querida – me agachei para olha-la nos olhos à altura dela – hoje esse um ano é muito, muito tempo, porque ele está começando, mas a cada dia fica menos tempo, até que um dia você acorda e já esperou todo o tempo que precisava esperar e o ano já passou.
- Entendi. Mas e esse medo de ficar sozinha que eu tô sentindo aqui na minha barriga – levou as mãozinhas delicadas à barriga a apertando - eu vou continuar sentindo até o tempo todo passar?
Sempre tive comigo o compromisso de não mentir para uma criança. Para os adultos é diferente, são adultos e também costumam mentir, mas para crianças não, crianças são puras, até quando mentem, e eu não queria ser aquele que macularia os sonhos de Maria Julia. E naquele momento, embora me parecendo que o menos cruel fosse mentir sobre a duração do desconforto que ela sentia, ainda assim, preferi não fazê-lo.
- Maria Julia, esse medo vai diminuir junto com o tempo de esperar, a cada dia que você acordar, um pouco do tempo de esperar já passou e um pouco desse medo também foi embora. Mas, até que seu pai retorne, a saudade vai te acompanhar, em alguns dias mais forte, noutros dias mais fraquinha.
- É, mas todo dia vou sentir saudade né?
- É verdade, primeiro ela vai crescer, mas depois de um tempo ela fica mais calma.
- E depois ela some também?
- A saudade de pai, de mãe, de vó, a saudade de pessoas a quem amamos, essa nunca some. Só fica mais calma.
- Mas tem saudade que acaba?
- A que você vai sentir do seu pai vai acabar quando ele voltar.
- Isso eu sei, estava falando de saudade de quem não volta, uma pessoa que morre.
- Saudade é uma coisa estranha Maju. Às vezes ela desaparece por completo, mas isso só acontece quando a pessoa de quem sentíamos a saudade também desaparece da lembrança da gente. Não é a vida ou a morte da pessoa que não volta que faz a saudade sumir. A saudade some quando não lembramos mais da pessoa.
- Mas daí é porque a gente esqueceu, não porque a saudade desapareceu. Olha, rimou – riu.
Ri com ela, muito mais por tensão quando um pensamento horrível me tomou de assalto. E se acontecesse alguma coisa com seu pai e aquela menininha jamais voltasse a vê-lo? Naquele momento tive uma amostra do mesmo medo na barriga a quê ela há pouco se referia.
- Johnnie, eu não quero esquecer meu pai, mesmo que a saudade fique maior que essa árvore.
- Você não vai esquece-lo querida. Eu tenho certeza disso.
- Então, se a saudade ficar maior que essa árvore, você faz outro balaço pra gente pendurar nela?
- Na árvore?
- Não... na saudade. Assim ela fica uma saudade divertida e não uma saudade de chorar.
- Prometo.
 
A. Masini

No caminho só comigo

Aqueles primeiros passos errantes,
Já nem me lembro quando os dei.
Mas sei que nem sempre assim o foram
Acredito; ainda mais, sinto, que já soube claro onde ia
Que já tive por certo aquele ou este destino
Hoje caminho porém como que a esmo
Faróis opacos de esperanças me orientam
Mas sombras de saudades me confundem
E nessa contenda de penumbra e luz branda
Meio a tudo jazem minhas pernas cansadas
Caminho ainda, por impulso orgânico
Com esses passos que seguem espásmicos.
Como a quem foge pouco importam rumos,
direção é luxo que para mim alheio.
Alheio eu mesmo de tudo em mim
Vez que tudo que penso e sinto
Fizeram-se todos assim
(talvez eu mesmo assim os fiz)
Sob um signo etéreo do “não eu”
Do “não nosso” “não meu”  
Como se sem lugar e outro fosse,
sem também repouso ou pouso não paro.
Sigo.
Caminho ainda por me ser o que resta
E como que assistindo a vida por uma fresta
Insisto nesses passos deslocados no espaço
desprovidos de objetivos outros distintos do mover
sugerem antes passos de dança
que apenas levam o corpo
o conduzem ao quê o olhar alcança.
Mas é curiosidade só
de chegar mais perto do quê não sei
para apenas ver sem concluir, sem tocar sem refletir.
A paisagem é outra também
Estranha daquela que me ladear vinha amiúde
quando orgulhoso andava com rumos
e de olhar agudo imaginava seguro
Saber por onde eu ia
Saber exato quem eu era.












A. Masini

Às vezes

Às Vezes


Às vezes,
minhas palavras não são capazes de traduzir com clareza tudo em que penso,
aquilo que sinto
e menos ainda o quê me vai na alma...
Às vezes,
meus pensamentos correm rápidos demais e não consigo acompanhá-los,
meu coração bate rápido demais,
como se desejasse fugir de dentro de mim,
ganhar independência, vida própria.
Às vezes, é minha alma que deseja correr,
partir para longe,
longe desse coração que sente e se ressente,
longe desse corpo que envelhece e se condói,
longe desses tantos pensamentos conflitantes,
longe dessas palavras que se perdem em enganos grosseiros
longe de tudo que macule o amor puro e branco
que minha alma tem pela vida.

A. Masini


Um mundo novo por detrás das palpebras

Um mundo novo por detrás das palpebras


Te enxergo tão bem quando de olhos fechados
que quando os abro,
nos efemeros instantes que ainda dura o lume do seu sorriso,
um mundo novo se descortina diante minha retina.
Nele, tudo é mais vivo
tudo é mais iluminado
tudo é mais colorido.
E minha vida,
a que ainda restou dentro de mim
me diz que esse bocado de existência,
sensivel apenas por suspiros
ou lágrimas fugidias desses mesmos olhos quando ha mais tempo abertos,
pode valer a pena
se o piscar dos meus olhos for mais lento, mais freguente
porque só quando os fecho
consigo observar o que há dentro de mim,
no centro do que sou.
Lá, você ainda permanece a mesma,
que um dia por mim também se apaixonou.

A. Masini


Apartados (antes mesmo de unidos)

Aparados



De onde vem esse seu poder de transformar meus dias? De reunir cada uma das nuvens escuras de chuva e fazê-las dissipar, para em seguida, surgir o sol, iluminando cada canto escuro de minha alma atormentada?

De onde vem esse encanto, que me faz depositar cada uma das minhas esperanças nos sonhos que seus sorrisos me promovem?

De onde vem esse sentimento que me invade os olhos, corre por minhas veias, toma meu corpo e se instala em festa em meu coração a cada oportunidade que tenho de te ver?

Que coro angelical é esse que canta pra mim sempre que te ouço?

Que mulher é você, que parece ter sido feita sob medida para meus abraços, beijos e carinhos?

Que vida afinal é essa, que apesar dessas tantas coisas que me põem na sua direção, ainda assim nos manteve apartados de tudo isso?



A. Masini