Quanto tempo demora um ano?
Já era manhã havia algum tempo
mas como o dia se apresentava nublado e alguma coisa frio, considerei o
silencio típico dos domingos, naquele especialmente acentuado, e me decidi por
permanecer na cama deixando os pensamentos ir e vir sem compromisso entre um
cochilo e outro. Foi quando me dei conta de que o interfone tocava.
O atendi com alguma má vontade,
quem poderia ser àquela hora de um domingo frio?
- Oi tio Johnnie. Você pode me
levar até a praça um pouquinho?
Era Maria Julia, a filha
encantadora da Rosana, minha vizinha folgada. Me chamava de tio quando queria
me agradar, um tipo de “tio adotivo” como ela mesma solenemente me intitulou na
noite em que jantamos juntos uma gostosa pizza de pepperoni enquanto sua mãe
tirava um cliente da cadeia. Minha “irmã postiça” além de folgada é também
advogada.
- Oi princesa. Onde está sua mãe?
- Está no computador fazendo uma
“pedição”. Disse que não pode parar agora. Mas eu quero mesmo é ir com você.
- Bom, é que eu ainda não tomei
café...
- Ah, não tem problema, a gente
toma na padaria.
Ela era de fato encantadoramente
esperta. Como dizer não?
- Ok, te encontro lá embaixo em
dez minutos tudo bem? Mas antes me deixa falar com sua mãe.
- Ela está acenando lá da sala
dizendo que tudo bem, que com você eu posso ir.
O que era verdade. Realmente pude
ouvir ao fundo a voz de Rosana dizendo “se o João Marcelo vai te levar pode ir,
ah, e é petição, não ‘pedição’ o que estou redigindo”. Rosana seria uma mulher
das mais interessantes, não fosse tão chata.
Nos encontramos na portaria do
prédio e embora Maria Julia estivesse sorridente, notei alguma coisa diferente
em seus olhinhos.
- Tudo bem com você princesinha?
- Tudo bem sim Johnnie.
Chegamos à praça e ela se
acomodou no balanço da árvore.
- Esse balanço que você fez ficou
mesmo muito bom.
- Que bom que gostou.
- Quanto tempo dura um ano
Johnnie?
A pergunta repentina me pegou
absolutamente despreparado.
- Como?
- É. Quanto tempo demora para
passar um ano?
- Bom, se contarmos em meses são
doze, se contarmos em dias, são trezentos e sessenta e cinco.
- Não Johnnie, não quero saber
dos dias, quero saber do tempo. – E fez um gesto com os bracinhos como quem
desenha dois círculos grandes à sua frente.
Eu não conseguia entender a
profundidade da pergunta e fazer nem a menor ideia do quê responder começava a
me desesperar.
- Você quer saber quanto tem de
esperar até que um ano tenha passado?
- Não, isso eu sei, vou ter que
esperar um ano. O que quero saber é quanto é isso, quanto tempo é um ano.
- Querida, o que vai acontecer
daqui a um ano?
- O meu pai vai voltar.
Aquilo ficava cada vez pior.
- Voltar para sua casa?
- Não Johnnie, para o Brasil.
- Ele foi viajar?
- Isso, foi trabalhar num outro
país. Acho que chama Europa.
- Entendi. E só volta daqui a um
ano. É isso?
- Isso. Eu quero saber quanto
tempo tenho de esperar ele voltar nesse um ano.
Naquele momento pude entender que
seu coraçãozinho estava aflito e seu desejo em verdade era o de saber por
quanto tempo sentiria o desconforto da ausência do pai, a solidão de não tê-lo
em sua companhia.
Me lembrei de quando eu mesmo era
um menino um pouco mais velho do que ela é agora e a saudade que senti da
Esther, uma menina linda vizinha da tia Lucia e que foi morar na Espanha.
Lembrei-me da saudade que senti da Selminha quando me vim embora para São Paulo
sabedor de que jamais a veria de novo. Mas, sobre tudo, lembrei-me da saudade,
ainda hoje dolorida, que sinto da minha avó, do Seu Túlio e da própria tia
Lucia.
Como agora, influenciado por
minhas próprias experiências, dimensionar a ausência ou quantificar a solidão
em termos compreensíveis para uma menininha de seis anos? Como demonstrar com
modelos ou comparações que aquele vazio da presença do pai, a que ela chamou
de“tempo que demora para passar”, não é quantificável ou sequer compreensível
exceto para que o sente; e que quem o sente o faz de forma tão particular que o
outro, por mais empático que seja, não consegue sequer imaginar?
- Querida – me agachei para
olha-la nos olhos à altura dela – hoje esse um ano é muito, muito tempo, porque
ele está começando, mas a cada dia fica menos tempo, até que um dia você acorda
e já esperou todo o tempo que precisava esperar e o ano já passou.
- Entendi. Mas e esse medo de
ficar sozinha que eu tô sentindo aqui na minha barriga – levou as mãozinhas
delicadas à barriga a apertando - eu vou continuar sentindo até o tempo todo
passar?
Sempre tive comigo o compromisso
de não mentir para uma criança. Para os adultos é diferente, são adultos e
também costumam mentir, mas para crianças não, crianças são puras, até quando
mentem, e eu não queria ser aquele que macularia os sonhos de Maria Julia. E
naquele momento, embora me parecendo que o menos cruel fosse mentir sobre a
duração do desconforto que ela sentia, ainda assim, preferi não fazê-lo.
- Maria Julia, esse medo vai
diminuir junto com o tempo de esperar, a cada dia que você acordar, um pouco do
tempo de esperar já passou e um pouco desse medo também foi embora. Mas, até
que seu pai retorne, a saudade vai te acompanhar, em alguns dias mais forte,
noutros dias mais fraquinha.
- É, mas todo dia vou sentir
saudade né?
- É verdade, primeiro ela vai
crescer, mas depois de um tempo ela fica mais calma.
- E depois ela some também?
- A saudade de pai, de mãe, de
vó, a saudade de pessoas a quem amamos, essa nunca some. Só fica mais calma.
- Mas tem saudade que acaba?
- A que você vai sentir do seu
pai vai acabar quando ele voltar.
- Isso eu sei, estava falando de
saudade de quem não volta, uma pessoa que morre.
- Saudade é uma coisa estranha
Maju. Às vezes ela desaparece por completo, mas isso só acontece quando a
pessoa de quem sentíamos a saudade também desaparece da lembrança da gente. Não
é a vida ou a morte da pessoa que não volta que faz a saudade sumir. A saudade
some quando não lembramos mais da pessoa.
- Mas daí é porque a gente
esqueceu, não porque a saudade desapareceu. Olha, rimou – riu.
Ri com ela, muito mais por tensão
quando um pensamento horrível me tomou de assalto. E se acontecesse alguma
coisa com seu pai e aquela menininha jamais voltasse a vê-lo? Naquele momento
tive uma amostra do mesmo medo na barriga a quê ela há pouco se referia.
- Johnnie, eu não quero esquecer
meu pai, mesmo que a saudade fique maior que essa árvore.
- Você não vai esquece-lo
querida. Eu tenho certeza disso.
- Então, se a saudade ficar maior
que essa árvore, você faz outro balaço pra gente pendurar nela?
- Na árvore?
- Não... na saudade. Assim ela
fica uma saudade divertida e não uma saudade de chorar.
- Prometo.
A. Masini