Se resolver usar meus textos para finalidades pessoais, por favor, tenha a delicadeza de citar a fonte.

No "Dia D", detono aqui, um espaço para Drummond


A um ausente

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

Carlos Drummond de Andrade

Carinho balsâmico

Já conhecia o Sebastião, “Tião para os de casa” como ele dizia; mas só tive o prazer de conhecer a Dona Sebastiana, sua mulher e dona da casinha mais graciosa em que já tive oportunidade de estar, em razão de uma queda de uma égua sem noção (meu orgulho de menino da cidade não permitiria reconhecer à época que o sem noção era eu mesmo).

Era ainda jovenzinho, dezesseis, dezessete anos e tipicamente tomado de paixão pelas aventuras daqueles tempos dos quais não sei dizer exatamente porque fui me lembrar agora  mas dos quais me sinto feliz por reviver.

Tião era caseiro em uma fazenda que costumava visitar durante as férias escolares e meu programa preferido era montar. Sentir a energia de um animal muito maior do que eu mesmo, uma força da natureza submetida aos comandos do meu corpo me fazia sentir especial e o ar puro que inflava meus pulmões naquelas oportunidades era como um reforço do Sopro Divino que deu vida a todos nós.

Obviamente que o mais prudente teria sido antes aprender, ao menos um pouco, sobre os riscos envolvidos a fim de tentar evita-los mas, por aqueles prazeres, especialmente em razão de minha imaturidade e completa inexperiência, me deixei levar despreocupado, credor de que tamanho bem estar jamais poderia me expor a qualquer perigo.

Naquela tarde sai pelo pasto apreciando o silêncio do entardecer, coração leve e alma livre, completamente distraído e confiante. Por sorte não estava trotando, exceto na alegria, essa sim galopava incontida dentro de mim quando, sem motivo aparente, a tal égua que em tantas vezes, dócil e submissa se permitiu por mim ser montada, assustou, me jogou ao chão e fugiu em disparada.

Me lembro de ter tentado levantar mas alguma coisa me mantinha no chão. Era o Tião, que antes mesmo de ter-me dado conta do ocorrido já estava lá, como um anjo da guarda me socorrendo.

- Calma menino, o tombo foi feio.

- De onde você veio Tião?

- Eu estava lá embaixo e vi quando a eguinha te jogou pra cima e foi embora correndo assustada. Fiquei preocupado quando percebi que você não se levantou, então vim ver o que houve.

- Eu nem te vi chegar.

- Você consegue se erguer?

- Sim, sem problemas. – Mas bastou tentar me levantar para senti que alguma coisa estava errada, não consegui me manter de pé e cai de joelhos.

- Senta mais um pouco menino, você bateu a cabeça.

Ficamos ali mais algum tempo, eu tentando entender e ele me amparando com um sorriso de quem sabia que tudo terminaria bem. Não sentia dor aqui ou ali, mas sim aqui e ali, sentia o corpo todo machucado, inclusive a segurança e a autoestima.

Quando consegui me erguer o sol já era posto e, amparado pelo Tião, fomos á sua casa onde Dona Sebastiana nos aguardava. Era tudo muito silencioso e eu me sentia com muito sono. Pedi ao Tião para me levar para a casa da fazenda onde costumava dormir mas eles se negaram e me fizeram deitar em sua cama.

Na manhã seguinte despertei com o sol adentrando as janelas, todas graciosamente enfeitas por cortininhas de chita delicadamente bordadas. A fronha e os lençóis tinham perfume de roupa recém lavada quarada ao sol e de algum lugar que imaginei fosse a cozinha, vinha um cheiro tão bom de café fresco com bolo quente que de pronto me pôs de pé.

O chão era de “vermelhão”, mas tão bem limpo e encerado que parecia um tipo de mármore rubro. As paredes todas impecavelmente brancas multiplicavam a luz que vinha das janelas e a atmosfera naquela casa traduzia paz e aconchego.

- Bom dia menino, já acordou?

Era Dona Sebastiana, uma senhora morena de feições muito bonitas e serenas, mas marcadas pela vida dura. Tinha uma voz delicada com sotaque honesto de gente sem maldade, gente de bom coração. Gente do campo que vive essencialmente do trabalho. Trabalho e serenidade que se refletiam em tudo naquela casa.

- Você está bem menino?

- Bom dia Dona Sebastiana, estou bem sim, um pouco sonado apenas.

- Vem, tem café.

Fui à pequena cozinha onde, acima da mesa de madeira polida, adornada por uma tolha com bordas de crochê, havia um bule de ágata com café fresco e um bolo ainda fumegando na assadeira.

Dona Sebastiana me serviu e ficou em pé me observando comer.

- Não vai se acomodar Dona Sebastiana?

- Já tomei meu café menino. Fique à vontade.

Agradeci e ficamos em silêncio.

O que houve depois são detalhes da hospitalidade, carinho e generosidade daquele casal que a vida, por meio de um acidente, me permitiu conhecer. Não que tais detalhes tenham sido menos significativos, mas o principal do que desejei abordar aqui já está descrito, o revés transformado em lembrança feliz por mãos verdadeiramente acolhedoras e honestamente amorosas. As mãos de um casal de bom coração, cujo gesto de oferecer sua acolhida singela a um menino machucado, foram mais marcantes que as cicatrizes do tombo. “O amor ajuda a cicatrizar as feridas, é um lenitivo para nossas angústias...”.

A. Masini

Pedaços inservíveis

Há algum tempo escrevi que a “saudade é um pedaço da alma da gente deixado n’algum lugar”.

O que não sabia, por me faltar experiência, é o quanto pode ser dolorido reencontrar tais pedaços de alma jacentes jungidos a um parque, uma esquina, um bar.

Constatar que já não são mais claros e luminosos como quando lá os deixei, sofreram os efeitos degenerativos do congelamento no tempo. Olhos opacos, fixamente voltados a um mesmo e repetitivo instante eternizado, porém há muito fenecido.

Sem se mexer, sem evoluir, sem viver. Apenas sombras estáticas e desformes, transformando em ranço e angústia aqueles momentos de encantos únicos que lá os fizeram permanecer. Homúnculos deslocados da realidade dinâmica, mergulhados na paixão cega de um laço afetuoso degradado, frio e desfeito, dedicados à perpetuar, como se possível fosse, a ignorância balsâmica dos acontecimentos supervenientes.

Presos a um contexto já vaporizado, insistem, recriando momentos preciosos em detalhes precisos, na ideia insólita de retomar os caminhos à partir dali e reescrever o quê já é história. Uma história que ganha contornos de tristeza inexistentes na origem, mas que ao ser revivida, faz surgir outro soluço, outro questionamento cada vez mais consistente, se o que houve foi interpretado corretamente, se foi de fato o que se imaginava ser, se valeu a pena viver, se teria valido a pena continuar.

Me conformo então com alma fragmentada que me sobrou, alma repartida e incompleta; e, para não me encontrar com a dor, me movo cauteloso evitando aqueles lugares onde deixei ficar meus pedaços. Pedaços hoje inservíveis.

A. Masini

Cinco à mesa

- Passarinho, traz uma rodada aqui pra gente querido?
- Vê também uma daquelas porções de torresmo.
- Boa. Torresmo – uníssono.
- Caras; vocês já foram elogiados por alguma mulher?
- Eu já. Elas me elogiam o tempo todo.
- Ah maninho, algumas são mais mentirosas e elogiam sim.
- Outras cobram, por isso elogiam – risos.
- Tô falando sério pô. Hoje eu vinha caminhando e passei por duas meninas, eram meninas cara, tá entendendo, de uns quinze, dezesseis anos, se tanto dezessete. E comentaram, na caruda, “olha que bundinha mais linda”.
- Ah velho, mas sua bundinha não é ruim não.
- É, essas eram das gentis. Mentem sem cobrar.
- Puta papo gay porra.
- Olha o chopinho senhores.
- Opá, um brinde, às gentis.
- Às mentirosas também pô.
- Delicia, o primeiro gole é sempre espetacular.
- Caras, eu fiquei chocado com o jeito das meninas. Onde já se viu? Elas estão se comportando como a gente agora.
- Relaxa querido, o quê tem demais um elogio legal assim?
- Fiquei constrangido.
- Deixa disso, pior foi comigo, que também recebi um elogio assim, mas vindo de dois caras.
- Ficou constrangido também “ursão”?
- Claro que não, fiquei envaidecido.
- Você quer dizer “engaydecido” né?
- Ah, só porque tenho uma bunda legal sou gay?
- Não, mas achar legal que outros caras curtam sua bunda é muito gay.
- Os cachorros cheiram a bunda um do outro e ninguém diz que eles são gays.
- Cachorro é gay pra caralho, eles lambem as próprias bolas.
- Deixa de ser ignorante, eles fazem isso por higiene.
- Higiene nada, eles fazem isso porque as cadelas não sabem fazer boquete.
- Passarinho, tem jeito de trazer outra rodada irmão?
- É, pode crer, as cadelas não fazem boquete, só as cachorras.
- Deixa de ser chovinista. Não precisa ser cachorra pra fazer boquete, basta gostar do que é bom.
- Porra, isso sim foi mega gay.
- A gente tá discutindo a sexualidade dos cachorros mas quem manda muito mesmo são os gatos.
- Gato é coisa de gay, gay assumido.
- Nada a ver ignorante. Eu assisti a um documentário sobre leões; cara, eles transam muuuito.
- Cara, leão é leão, gato é gato tá ligado? Aquele bichinho que anda em telhado, bebe leitinho e mia. Gay pra caralho.
- Cara, isso tá parecendo compulsão.
- Fala sério, vocês já ouviram a barulheira que a gata faz quando transa? Porra, o gato deve mandar bem demais.
- Nossa, mas é burro mesmo e ainda passa recibo. Aquilo é parte do ritual de acasalamento sua anta, tem nada a ver com tesão.
- Pode crer; é tipo ele pedindo pelo amor de Deus para ela dar para ele.
- Passarinho, a gente tá desidratando aqui querido. Tem com vir outra rodada?
- Vocês falaram de gato e eu me lembrei de peixe. Será que sereias transam?
- Porra, se existisse transariam.
- Se transariam eu não sei, mas boquete fariam com toda certeza.
- Fariam pra quem gênio? Sereios não tem pau.
- Ah cara imagina, seria surreal um boquete de uma sereia.
- Seria caro isso sim. O motel teria de ser daqueles com piscina e depois, pra levar a mina embora, ainda teria de descer a serra.
- Maluco, vocês são burros demais mesmo. As sereias quando estão em terra firme têm pernas como qualquer mulher.
- Pode crer, mostraram isso no filme Piratas do Caribe né?
- Não sei. Eu vi no desenho da Pequena Sereia.
- Pequena Sereia? Caralho que gay! Muito gay.
- Passarinho, secou o barril? Porque aqui já era.
- Manos, falando sério, dia desses eu vi na WEB um vídeo de um golfinho querendo transar com uma mina.
- Como assim? Um golfinho e uma mulher transando? Tá maluco?
- É sério cara, eu também vi. Tinha a mina e um cara, acho que namorado, marido, sei lá. Estavam nadando com golfinhos, devia ser daqueles programas de turistas em Cancun. Ai o golfinho dá umas cheiradas nas partes da mina e vai pra cima.
- Isso mesmo, com o pau de fora. Mó pauzão do golfinho.
- Gay.
- E a mina?
- Ela fica tentando empurrar o golfinho mas o bicho é insistente.
- Mina trouxa, deveria ter transado com o bicho. Entraria para a história, ficaria famosa.
- Famosa e presa. Isso é crime.
- Que crime doido, estupro presumido porque o golfinho é inimputável?
- Crime de perturbação de cetáceo. É sério.
- Vai se foder maluco. Você tá inventando isso.
- Pode crer, ou teriam de prender uma par de manauaras já que no Amazonas a mulherada trepa com os botos.
- Porra maluco, sua ignorância não tem limite mesmo heim? Elas não transam com os botos. Eles viram homens para fazer sexo com as minas. E para disfarçar, usam um chapéu que esconde o furo no alto da cabeça.
- Que furo doido?
- Aquele por onde o boto respira.
- Que ridículo. Imagina um cara peladão e cor de rosa com um chapéu na cabeça trepando com uma índia.
- Seu débil, não tem só índia lá não ô ridículo. Parece americano.
- Cor de rosa nada, eu ví um filme que o boto virava o Riccelli, todo morenão. Era legal porque ele fazia uns trejeitos como se fosse um boto mesmo.
- Riccelli morenão. Puta comentário gay heim?
- Passarinho, você vai ficar sem caixinha hoje querido. Os copos já estão todos vazios.
- Achei. Está aqui na internet. Lei 7643/87 artigo primeiro. “Fica proibida a pesca, ou qualquer forma de molestamento intencional, de toda espécie de cetáceo nas águas jurisdicionais brasileiras”. A pena pode chegar a cinco anos.
- Caralho. É sério. A porra da lei existe mesmo.
- Que bosta, então não posso transar com a sereia?
- Eu não estaria nem aí, se encontrasse uma sereia eu transava, nem que tivesse de ficar preso depois.
- Nada a ver ignorante. Sereia não é cetáceo. Só golfinhos e baleias.
- Só se fosse uma “seleia” né? Tipo, metade mulher metade baleia.
- Aí é ruim. Por “seleia” eu não encaro cana não.
- Talvez a pena fosse reduzida já que é só meio cetáceo.
- Ah, qual é, não curte uma gordinha não?
- Curtir ele curte, mas tem medo de não dar conta porque tem o pau pequeno.
- Qual é maluco, desde quando você conhece meu pau?
- Porra, olha aí o papo gay de novo.
- Senhores, mais uma rodada chegando.
- Boa Passarinho.
- Um brinde, um brinde.
- A quê?
- Aos cachorros. Que são capazes de lamber as próprias bolas.
- Tem certeza de que lamber as próprias bolas não é gay?
- Acho que não, sei lá, que se foda.
- É, pode crer. Aos cachorros então.
- Aos cachorros – uníssono.

J.S. (A. Masini)

“Cedinho”?

- Achei que vocês não fossem abrir hoje.

- Ô seu Johnnie, a padaria só abre as seis e meia.

- Agora eu sei – sorriu – Não queria ir para casa sem forrar o estômago. Não me faz bem dormir com fome.

- Imaginei, o senhor “tá virado” né? Nunca ví o senhor por aqui tão sedo.

- Dormi um pouco no carro enquanto esperava.

- O de sempre?

- Sim, mas com uma pequena variação, me traz o croissant de sempre, com bastante manteiga, um toddy batido e acrescente uma coxinha ou duas.

- Desculpa seu Johnnie, ainda não recebemos os salgados, a moça só traz lá pelas nove. Mas os sonhos estão fresquinhos.

- Huuumm, ótimo, então me traz um no lugar das coxinhas.

Acomodou-se no balcão e esperou com a paciência que a fome não lhe havia ainda carregado.

Ao receber o pedido insólito, abriu um sorriso de satisfação e com ar de quem ganha um presente, degustou dedicado seu café da manhã.

- Ô Correia, vê uma comanda aí querido? Já estou satisfeito, agora vou para o meu sono dos justos.

Enquanto o atendente preparava a comanda com sua conta, pode notar, pelo espelho acima do balcão, aquela moça linda, até então nunca vista antes, se aproximar e fazer seu pedido com voz firme.

- Bom dia Correia, você poderia, por gentileza, me servir um café preto duplo e um pãozinho na chapa?

- Pois não dona Linda, é pra já.

- Vou esperar na mesa ok?

- Sim senhora.

A moça era linda de fato. De uma beleza naturalmente descontraída. Usava um jeans puído de fabricação como se fosse surrado, uma camiseta básica azul clara e um tenisinho que não podia ser maior do que 35. Os cabelos de um loiro escuro mesclado, levemente despenteados, emolduravam de luz e sombra aquele rostinho delicado. Tinha cheiro de banho e um andar que harmonizava perfeitamente graça e segurança. Carrega um livro cujo título Johnnie não conseguiu enxergar.

- Correia, Correia, chega aqui meu querido. Quem é essa moça?

- A dona Linda?

- É, essa linda.

- O nome dela é Linda seu Johnnie.

- Maninho, ela é um encanto. Vem sempre aqui?

- Toma o café da manhã aqui.

- Caramba, como nunca a tinha visto?

- Seu Johnnie, quando o senhor toma seu café da manhã aqui, normalmente é depois do meio dia, ela vem sempre nesse horário.

Olhou o relógio na parede, sete e doze.

- Caralho Correia, sempre assim tão cedo?

Ficou por ali mais um pouco tentando observá-la com discrição. Pensou por um momento em levar-lhe o café que havia pedido mas, por sorte, já que sua lucides jazia comprometida, desistiu prontamente da ideia ridícula.

- Correia, Correia, chega aí irmãozinho, o que mais sabe dela?

- Quase nada seu Johnnie, só que é muito educada e gente fina. Trata a todos aqui da padaria com muita simpatia e nunca reclama de nada.

- Sabe se é casada?

- Não sei se é casada, às vezes traz a filhinha mas nunca a vi com o pai da menina.

- Você reparou no nome do livro que ela tem na mão?

- Não tenho certeza, acho que era Juízo Final, Juízo Mortal. Alguma coisa assim.

- Hã? Meu, ela não tem cara de quem leia um livro com um nome de Juízo Mortal. E o autor? Viu o nome do autor?

- Jean qualquer coisa, acho que Pivete. Jean Pivete. Será?

- Jean Pivete? Sei lá, nunca ouvi falar. Cacete Correia, de onde você tirou isso?

Sorriu conformado, despediu-se do atendente e foi-se embora sem pensar mais na moça.

Mais tarde quando acordou, já por volta das 13 horas, resolveu que faria algo diferente naquele dia. Foi ao depósito de materiais para construção, comprou alguns metros de corda de algodão, dois ganchos e um pedaço de madeira que pediu para furar. Na volta, pediu uma escada emprestada ao zelador, foi à praça que havia em frente ao condomínio e começou, enfim, a montar no galho de uma árvore, o balanço que há algum tempo havia prometido para sua amiga Maria Julia, uma menininha linda e criativa filha de sua vizinha.

A tal praça já contava com alguns brinquedos; balanços, gangorras, um gira-gira e uma casinha de bonecas feita de madeira, mas Maria Julia lhe havia pedido especificamente um balanço de árvore onde ela pudesse, segundo suas próprias palavras, sentir-se uma borboleta voando sobre a grama. Johnnie não resistiu e mesmo sendo absolutamente desprovido de habilidades manuais, prometeu à menininha que o faria.

Quando já estava no alto da escada pensando em como fixar a corda aos galhos mais resistentes, ouviu uma voz de menina o chamar.

- Moço, o senhor está caçando passarinhos?

Olhou para baixo e viu uma garotinha com roupa de Branca de Neve.

- Não dona Branca de Neve, estou tentando montar um balanço.

A menininha então sorriu e saiu correndo para um canto da praça fora de seu campo de visão.

Ficou curioso com a garotinha, mas voltou sua atenção ao projeto do balanço e, depois de algumas tentativas, erros e acertos, conseguiu finalizar o brinquedo. Testou-o como pode apoiando-se nas cordas e, concluindo que era suficientemente forte, procurou ao redor alguma criança que se dispusesse a estreá-lo. Encontrou a Branca de Neve.

Aproximou-se e, cumprimentando a moça que a acompanhava perguntou:

- Oi dona Branca de Neve, você gostaria de testar o balanço na árvore que acabei de montar?

- É seguro?

- Sim senhora, pode confiar.

- Posso ir tia Ma.

- Pode sim querida.

Agradeceu à moça e acompanhou a garotinha até sua obra.

- Você está linda com esse vestido, Branca de Neve.

- Obrigada moço do balanço, mas Linda mesmo é a minha mãe.

- Ah, tenho certeza de que é realmente muito bonita.

- O nome dela é Linda.

Olhou então a menininha com mais atenção e reconheceu a semelhança no rosto delicado emoldurado por cabelos despenteados.

- Que legal, então o nome dela é Linda?

- É sim. Ela é professora. Muito bom esse balanço moço. Ficou super divertido, a gente consegue ir mais longe e mais alto. Essa praça estava mesmo precisando de um brinquedo novo.

“Professora!” - disse admirado para si mesmo – “Correia, você é uma anta, Jean Pivete!”.

- Fico feliz que tenha gostado. Você vem sempre aqui?

- Todo sábado e domingo que minha mãe pode ela me traz. Hoje meu pai foi me visitar e ela pediu para minha tia me trazer. Tinha que conversar alguma coisa com ele que eu não podia ouvir, então a tia Ma me trouxe, mas quando eu contar para ela desse balanço novo que o senhor fez, aposto que ela vai querer ver.

- Que legal, então você e sua mãe vêm aqui amanhã? Hã, mais ou menos nesse horário?

- Não moço, cedinho né? Minha mãe só gosta de vir aqui de manhãzinha porque tem menos gente.

- “Cedinho”? Entendo – E fez uma careta que não passou despercebida ao olha esperto da menininha.

- Por que essa cara moço?

- É que amanhã vou ter de acordar bem “cedinho” lindinha, e parte da minha noite, vou passar acordado aprendendo o que puder sobre Jean Piaget.

J.S. (A. Masini)

Das heranças valorosas

Numa manhã há bastante tempo passada, meu pai, me vendo calado e arredio, despretensiosamente como quem dá bom dia, me disse: “Alguns problemas a gente consegue resolver sozinho; para outros, precisamos de ajuda”.
Eu o olhei tentando fazer cara de quem está absolutamente seguro, sorri, respondi um “valeu” desprovido de qualquer reflexão e voltei aos medos que me atormentavam naquela manhã. Embora me lembre exatamente quais eram, no contexto atual, me parecem hoje tão pequenos que não vale comentar.
Na tarde daquele mesmo dia procurei meu pai logo depois do almoço e o inqueri:
- Se eu pedisse sua ajuda para resolver coisas que não sei como resolver, não iria te parecer incompetente aos seus olhos?
Ele me olhou de cima a baixo como simulando alguma dúvida, depois me olhou nos olhos e respondeu:
- Que tipo de amor seria o meu se te julgasse de forma tão cruel?
- Pai, minha maior preocupação é não desapontar ao senhor, a mamãe e às minhas irmãs.
- Todos nós, num momento ou outro de nossas vidas, vamos despontar alguém em nossos caminhos. E você está certo em se preocupar, desapontar a quem amamos machuca dos dois lados.
Naquele momento senti meu sangue gelar. Suas palavras reforçavam meus medos. E ele continuou.
- As pessoas a quem amamos, são mais amadas à medida que encontramos nelas um sentimento reciprocou, caso contrário, sem reciprocidade, o amor por elas sucumbiria e logo deixariam de ser importantes. Esse amor mútuo filho, implica em confiança e pedir ajuda é justamente exercitar essa confiança. É, em essência, exercitar o amor reciproco.
Estava ainda meio confuso; pedir ajuda era bom ou ruim?
- Acho que não entendi pai.
- Senta aqui comigo – e apontou a beirada da cama – é normal, em qualquer idade, e te digo isso porque eu mesmo às vezes daria um braço para ter os conselhos do seu avó, que eventualmente a gente não consiga enxergar as possíveis soluções para situações que a vida nos apresenta. Isso nos assusta e o medo do desconhecido turva nossa visão, nos tira o objetivo, não permite que encontremos o melhor caminho.
- Sei, ficamos inseguros não é?
- Isso, inseguros. Porém, há nada de errado em sentir-se assim, em reconhecer que às vezes as dificuldades parecem ser maiores do que a gente. Menos errado ainda é pedir a ajuda de quem confiamos.
- E se a pessoa para quem pedimos ajuda achar que o problema é uma coisa besta?
- Melhor, mais facilmente essa pessoa poderá te ajudar a solucioná-lo. Achar que seu problema é besta, como disse, não indica que você seja uma besta (riu).
- Indica o que então pai?
- Indica que você está aprendendo, mais ainda, indica que você confia na pessoa a quem recorreu e vê nela a experiência e generosidade suficientes para te socorrer. Indica que você pode não conhecer os caminhos, mas que está disposto a enfrentar as dificuldades que deles decorram. Indica que você tem coragem também para reconhecer suas dificuldades, indica, sobre tudo, que você não é um fraco embora se sinta fragilizado.
- Então, pedir ajuda não é sinal de fraqueza?
- Não meu filho, não é sinal de fraqueza e sim de que você é humano.
- Não é motivo para desapontar a pessoa que nos ama?
- De jeito nenhum, não mesmo, ao contrário, você estará dizendo a essa pessoa que confia nela, a ponto de abrir a ela sua a intimidade, o seu coração.
- Valeu pai, agora estou em paz.
- Quer me dizer agora qual era o problema que te preocupava antes do almoço?...

Meu pai morreu cedo, há muito tempo infelizmente, mas o reencontro todos os dias observando os valores que me deixou, praticando as lições que me ensinou, percorrendo o caminho estreito porém bem sinalizado que me indicou. Valeu pai, e só para constar, quando te reencontro, estou em paz.

A. Masini

Às vezes

Às Vezes


Às vezes,
minhas palavras não são capazes de traduzir com clareza tudo em que penso,
aquilo que sinto
e menos ainda o quê me vai na alma...
Às vezes,
meus pensamentos correm rápidos demais e não consigo acompanhá-los,
meu coração bate rápido demais,
como se desejasse fugir de dentro de mim,
ganhar independência, vida própria.
Às vezes, é minha alma que deseja correr,
partir para longe,
longe desse coração que sente e se ressente,
longe desse corpo que envelhece e se condói,
longe desses tantos pensamentos conflitantes,
longe dessas palavras que se perdem em enganos grosseiros
longe de tudo que macule o amor puro e branco
que minha alma tem pela vida.

A. Masini


Um mundo novo por detrás das palpebras

Um mundo novo por detrás das palpebras


Te enxergo tão bem quando de olhos fechados
que quando os abro,
nos efemeros instantes que ainda dura o lume do seu sorriso,
um mundo novo se descortina diante minha retina.
Nele, tudo é mais vivo
tudo é mais iluminado
tudo é mais colorido.
E minha vida,
a que ainda restou dentro de mim
me diz que esse bocado de existência,
sensivel apenas por suspiros
ou lágrimas fugidias desses mesmos olhos quando ha mais tempo abertos,
pode valer a pena
se o piscar dos meus olhos for mais lento, mais freguente
porque só quando os fecho
consigo observar o que há dentro de mim,
no centro do que sou.
Lá, você ainda permanece a mesma,
que um dia por mim também se apaixonou.

A. Masini


Apartados (antes mesmo de unidos)

Aparados



De onde vem esse seu poder de transformar meus dias? De reunir cada uma das nuvens escuras de chuva e fazê-las dissipar, para em seguida, surgir o sol, iluminando cada canto escuro de minha alma atormentada?

De onde vem esse encanto, que me faz depositar cada uma das minhas esperanças nos sonhos que seus sorrisos me promovem?

De onde vem esse sentimento que me invade os olhos, corre por minhas veias, toma meu corpo e se instala em festa em meu coração a cada oportunidade que tenho de te ver?

Que coro angelical é esse que canta pra mim sempre que te ouço?

Que mulher é você, que parece ter sido feita sob medida para meus abraços, beijos e carinhos?

Que vida afinal é essa, que apesar dessas tantas coisas que me põem na sua direção, ainda assim nos manteve apartados de tudo isso?



A. Masini