Se resolver usar meus textos para finalidades pessoais, por favor, tenha a delicadeza de citar a fonte.

Votos para a vida

Nessa época do ano, isto é, chegado seu final calendarizado, é costume recebermos e enviarmos para o ano vindouro votos de prosperidade, bem aventurança, felicidade etc. como se o tempo, em sentido amplo, obedecesse a fragmentações impostas por convenções sociais; como se a vida prática não fosse linear e sim cíclica.

Obviamente que me sinto agradecido aos amigos sinceros pelos desejos manifestados, especialmente àqueles que sei, o fazem de coração (nem vou aqui me estender às práticas puramente hipócritas, outra mania que acomete a muitos nesses dias) porém, contrario senso ao que me parece, não acredito que seja a mudança do calendário que vai favorecer a qualquer um de nós nas conquistas de nossos objetivos, na solução de nossos problemas ou no encontro com a tão desejada felicidade.

Tão pouco acredito que esse ou aquele ano tenha o poder de mudar o rumo de nossas vidas. Esse poder está em cada um de nós e o exercitamos em nossas escolhas e ações. É por meio destas que traçamos nosso caminhar. São elas que nos permitem alcançar o bem estar e evitar alguns infortúnios. Alguns, pois que de outros, infelizmente, nem mesmo nossas mais honoráveis ações podem nos livrar, como é o caso da perda de uma pessoa querida, seja em razão do inexorável final de sua jornada entre nós, seja por conta de uma escolha pessoal que a faça distanciar-se noutras buscas.
Dia desses, em uma mensagem de final de ano (de gosto absolutamente duvidoso na escolha das palavras) onde supostamente estaria guardada pretensa receita de bem viver, me deparei com a seguinte afirmação, “se o seu ano não foi dos melhores, lembre-se que os tombos nos fazem mais fortes”. Discordo. Não imagino como um infortúnio em si possa fortalecer alguém. Por outro lado, creio firmemente no amadurecimento decorrente da reflexão honesta que se proponha fazer a partir da adversidade ocorrida. Ante ao “tombo”, cada um tem a opção de agir para se erguer, ou não agir e permanecer caído. O revés em si, só pode ser, no muito, um ponto de partida; um catalizador para o aprimoramento pessoal resultante da forma como optamos por lidar com a "queda".
Ante tais conjecturas e considerando que a conscientização de que a responsabilidade pelos resultados de nossas ações é unicamente nossa (cabendo-nos sua integral assunção) se traduza em poder e não entrave, meus desejos – para sua vida toda e não apenas para 2013 – não poderiam ser outros que não os de que você seja absolutamente capaz de fazer as melhores escolhas e tenha sempre a coragem necessária para pô-las em prática.

Abraço fraterno
A. Masini

Sereia X Macarronada

- Ô João, você não vem nadar com a gente?
- Não, obrigado, vou pra casa, minha tia fez macarronada.
- Deixa de ser bobo, a macarronada vai estar lá quando você voltar.
- A represa também estará lá amanhã.
Em particular – Tem certeza? As meninas vão, inclusive a Selminha.
- É, eu sei. Só que ela vai por causa do Roberto. Prefiro ir pra casa. Não quero ter de vê-la se jogando pra ele.
- Poxa, achei que você gostasse mesmo era daquela menina da cidade que foi embora pra França.
- Espanha. Não, a Ester é só minha amiga.
- Bom, se você prefere assim. Tomara que a macarronada esteja muito boa.
- Tomara.
E com passos indecisos João Marcelo tomou o rumo de casa. Embora fosse maio fazia bastante calor naqueles dias, de forma que ia pelo caminho imaginando o quanto poderia ser divertido ir à represa, especialmente se o Roberto não fosse. Ou ainda melhor, se não fosse ele o dono do coração da Selminha.
Imaginou-se adentrando a água fresca, a sensação do primeiro mergulho, a quietude do campo àquela hora da tarde enquanto boiasse olhando o céu claro. Considerou a possibilidade de tocar a pele molhada de Selminha durante as brincadeiras e depois, quando se acomodassem na prainha para se secarem ao sol, ajuda-la a pentear os cabelos molhados. Ficaria bem perto dela de forma que pudesse observar as delicadas pintinhas de seu rosto e quando ela falasse com ele, sentir o cheiro de fruta que vinha de sua boca. Se fosse ele o menino dos sonhos dela, poderiam ficar de mãos dadas e quando fossem embora para suas casas, levariam tanta saudade que a noite demoraria a virar dia novamente. É, seria perfeito.
Quando ia chegando em casa notou que o Sr. Getúlio se encontrava sentado em sua cadeira de balanço no alpendre da casa vizinha.
- Boa tarde “Seu” Túlio.
- Boa tarde. Como vai menino?
- Tudo bem. E o senhor?
- Hoje, depois do frio ter indo embora, estou bem. Mas me preocupa esse calor fora de época. A natureza está toda bagunçada.
- É o progresso “Seu” Túlio.
- Você está bem mesmo menino? Hoje é sexta-feira e com esse calorão você veio direto da escola pra casa?
- Pois é.
- A represa secou?
- Não. Não foi isso não – sorriu amarelo.
- Que houve então?
- Posso me sentar aí um pouquinho com o senhor?
- Claro menino. Desde quando você precisa me pedir para entrar em minha casa?
- Sabe o que é “Seu” Túlio, é que tem uma menina.
- É, sempre tem menino. Ela é bonita?
- Não é tão bonita, mas pra mim ela é linda.
Sorriu – Como é isso menino?
- Então “Seu” Túlio, ela é baixinha e magrinha. Tem bastante cabelo. Tem a pele bem lisinha, mas é pintadinha com umas sardas perto do nariz arrebitado. Tem um rostinho bem miúdo. As mãos dela são pequenas com unhas curtinhas. Quando ela ri me dá vontade de rir também.
- Ela é engraçada?
- É. Um pouco. Mas não é isso que me faz rir. Eu não sei dizer o que é “Seu” Túlio, acho que eu fico feliz perto dela.
- E ela não foi para a represa?
- Foi. Mas tem um garoto. O Roberto. Ela gosta dele.
- Como você sabe que é dele que ela gosta?
- Pelo jeito que ela sorri pra ele. Eu queria que ela sorrisse daquele jeito pra mim. Só pra mim.
- Você sempre quer a amora do galho mais alto né menino?
- Amora?
- Você não lembra mais do tombo da amoreira?
- Me lembro do tombo mas, foi por causa de uma amora?
- Você dizia que era “a única amora que você via na árvore”.
- Verdade “Seu” Túlio. Me lembrei. A amora que eu tinha medo do morcego comer né?
- Essa mesma menino. Todo dia você inventava uma coisa diferente para proteger sua amora do morcego, do gambá, do sanhaço.
- É verdade “Seu” Túlio. Nossa, agora que o senhor comentou eu estou lembrando. Eu quis tanto aquela amora, e ela acabou caindo da minha mão.
- Ela da sua mão e você da árvore. Se machucou todo por causa da frutinha e uns dias depois a amoreira ficou toda carregada.
- Verdade. E tem sido assim todos os anos. Chega a perder.
- Então, agora corre pra represa. Quem sabe você não encontra por lá, não uma amora fujona, mas uma sereia de água doce.
- Vou nada “Seu” Túlio, vou é pegar a macarronada com frango da tia Lucia. Essa pelo menos é de verdade. Vamos?
- Agradeço menino, mas já almocei.
E, voltando do portão da casa do amigo por onde já saia apressado - “Seu” Túlio, obrigado.
- De quê menino?
- Por me ajudar a curar os machucados.













A. Masini

Beijo, uma versão particular

Com a proximidade dos rostos,
O hálito morno advindo da boca desejada, inalado, nos penetra o corpo, o percorre todo
Sentimos na pele o ofegar do outro e o curso do encontro já é inevitável
Prenunciando a entrega, um tremor de antecipação percorre todo músculo
Uma ansiedade com viés de angustia nos quase prende entre um instante e outro
O tempo faz pausa e o coração se perde em descompassos
Os lábios, com a alegria do peregrino que chegou à casa, enfim se encontram
Algumas vezes com uma delicadeza pueril, advinda talvez do desejo de retardar o momento,
Apenas se “beliscam” úmidos, ainda tímidos
Noutras, em entrega inconfessável, rendem-se aos apelos da urgência e o beijo é quase violência
Inebriante mas sublime indecência
Os corpos em frenesi se espremem um contra o outro;
Compartilhar das bocas comungando o prazer não lhes basta,
E como se não fossem mais corpos unos,
Mas meios corpos cuja completude está no corpo outro,
Buscam inconscientes amalgamar-se ao outro corpo
Dai em diante o universo, cúmplice da magia do momento, se abre em opções
E a consciência se entrega à emoção do instante por completo
Tudo isso é beijo, bocas, corpos, universo e almas,
O encontro mais íntimo e precioso entre dois
Mas, guiando os lábios na surreal jornada do encontro,
são antes os olhares, quem primeiro se beija.


















A. Masini

Reflexão de Natal

Penso que estejamos vivendo tempos em que a opulência tornou-se necessidade. Nada parece ser bastante.

Sofremos por protelar uma alegria que, vivendo assim, jamais experimentamos e como consequência vem essa espécie de “carência criada”, essa constante inquietação de “querer sempre mais”; quando nesse ponto, jazem vazios nossos corações. Vazio que fere a alma e envenena a essência; nos faz indiferentes às relações de amor verdadeiro, à família e até aos valores éticos, ética no sentido próprio, a “arte do bom”.

Vazio advindo do esquecimento, vez que nos esquecemos como é ser feliz com o simples, com o frugal, porque a moda, essa eterna sedutora, os distorceu aos nossos olhos, atribuiu-lhes sentido negativo e o simples, o frugal, deixaram de ser sublimes para se tornarem sinônimos de fracasso, de derrota.

Com isso tentamos, em desespero, suprir a “necessidade criada” de sermos reconhecidos nos bens que acumulamos, nas farras etílicas e gastronômicas a que nos entregamos, nos objetos desnecessários que possuímos, no numero de romances de uma noite a que nos lançamos.

Por termos esquecido quem somos em essência, desaprendemos a reconhecer a essência do outro e até mesmo a olhar-lhe nos olhos; esquecemos como é reconhecer e sentir através da empatia. Já não ousamos sequer tentar vestir a pele do próximo para experimentar seus incômodos, seus medos, suas necessidades. Distanciamo-nos do próximo. Centramos nossa atenção cada vez mais em nossos próprios umbigos nos esforçando para adorná-los com “piercings” de diamantes onde possamos anestesiar, por hipnose, as buscas inconscientes dos nossos olhos.

Assim, a essência do Natal dilui-se em espumantes caros e qualquer culpa inconveniente que fortuitamente nos reste é prontamente sufocada com farofa e pernil. Com taças de cristal fino brindamos sofismáticos o espirito do Natal que há muito apenas nossas palavras praticam, e embora seja apenas o líquido nelas borbulhante que eventualmente traga o nome dessa ou daquela “viúva”, a orfandade já atingiu a todos nós.

A. Masini

O amor da coragem que os poetas desconhecem

Seus olhos, de um azul delicado porém opaco, jaziam fixos no teto marcado com manchas de infiltração. Miravam um ponto invisível como que perdidos n’alguma memória ainda retida mas só por ela perceptível. A sala onde se encontrava confinava uma atmosfera pesada cheirando a clausura e, afora o barulho dos restos de água da chuva gotejando na calha de lata lá fora, tudo o mais era silêncio.

Seu semblante era sereno e resignado apesar do evidente cansaço que denotava e a boca entreaberta, pálida como toda sua pele frágil, lhe conferia a aparência de quem precisa de socorro mas já não dispõe de forças, voz ou até mesmo desejo para pedir.

Ficamos ali observando aquela senhora debilitada e silenciosa enquanto esperávamos pela chegada do meu tio, seu marido. Nos entreolhávamos aturdidos vendo no olhar um do outro o quanto cada um de nós se encontrava surpreso com sua situação.

Sai da casa controlando meu desejo de correr, me esforçando para compreender que não havia como fugir da impotência que me tomava conta. Parei na calçada e voltando meu olhar ao sobrado pude observar que tudo o mais havia perdido importância para seus moradores. O carro quebrado abandonado na garagem indicando há muito tempo não ser usado; o jardim tomado por matos, os beiras dos telhados apodrecidos, a veneziana da janela sem fecho que batia contra a parede ao sabor do vento, a ferrugem abundante no gradil do portão de ferro bem como na corrente que o prendia, as pinturas das paredes, onde ainda haviam, maculadas das manchas características de humidade.

Tentava desviar os pensamentos tristes observando um cachorrinho que me olhava da laje na casa vizinha quando alguém me chamou à atenção para meu tio, que trazendo com esforço duas pesadas sacolas, vinha chegando. Fui ao seu encontro, o abracei, trocamos um beijo, tomei as sacolas de suas mãos e sorrindo pela alegria do reencontro caminhamos juntos até sua casa onde os outros o aguardavam.

Ele cumprimentou a todos com carinho e alegria e depois, com calma, voltou-se para sua mulher acamada. Fez-lhe um carinho nos cabelos brancos, já ralos mas muito bem penteados, sorriu-lhe e perguntou como se sentia. Ela retribuiu olhando-o nos olhos, ofereceu-lhe um sorriso puro como o de uma criança e por todo o tempo que durou aquele momento a vida se instalou novamente em minha tia.

Ele a abraçou com paixão, mas com a delicadeza de um ourives, beijou-lhe o rosto e a testa, voltou-se para nós e nos convidou a irmos à sua cozinha para um copo d’água, já que o calor era forte.

No caminho até lá, passando por outros cômodos da casa, pude notar o mesmo descaso, isto é, as coisas abandonadas nos cantos, livros empoeirados sobre a estante, vasos com plantas e terra secas. Tudo era abandono e esquecimento.

Já na cozinha meu tio nos contou que há oito meses se dedicava quase que unicamente aos cuidados com minha tia. Seu tempo era dividido com as roupas que necessitavam ser lavadas e passadas, a feitura dos alimentos, os horários dos remédios e os tantos cuidados de quê dependia sua mulher. Contou-nos das dificuldades em cuidá-la vez que ele mesmo já não contava com a saúde de antes; havia completado setenta e um anos há alguns dias.

Sobrou-lhe porém, naquele dia, algum tempo para as lembranças da mocidade e foi com o coração cheio de gratidão que me entreguei aos sorrisos com ele e seus irmãos ali presentes.

Antes de partirmos, uma de suas irmãs perguntou ou meu tio sobre sua fé. Ele respondeu que orava todos os dias pelo conforto de sua mulher e para receber forças a fim de continuar lhe cuidando. Ato continuo, de um dos poucos lugares na estante em que o pó não fez morada, pegou o álbum de fotografias de seu casamento e nos convidou a folheá-lo com ele as páginas que havia marcado com um papel amarelo. Em todas elas se encontravam fotografias onde apenas eles dois apareciam, sempre sorridentes e carinhosos um com o outro; naquele momento pude ver a coragem e a força pulsar revigoradas nos olhos do meu tio.

O amor quando não é lindo, é santificado.

A. (de Abreu) Masini

Olhar domesticado

- Você é impressionante. Não tem jeito mesmo né João Marcelo?
- Que foi lindona?
- Não pode ouvir um “tóc-tóc” de saltos altos que já se vira para procurar.
- Desculpa Cris, é automático.
- Cara de pau.
- Cara atento querida. De instintos aguçados. Não sou escoteiro mas estou “sempre alerta” – risos.
- Você não presta isso sim.
- Não presto pra quê gostosura?
- Seu cínico.
Sorrindo – você sabe que cínico vem do grego e quer dizer cachorro?
- É a sua cara. Um cachorro vira-latas
- Sendo eu então um cachorro, você não deveria se preocupar, não há animal mais fiel. Só precisa me dar carinho.
- Os domesticados pode até ser.
- Ser vira-latas é parte da minha natureza, minha Cocker
- Cocker?
- Spaniel.
- Hã?
- É, tipo a Dama e o Vagabundo da Disney. Lembra?
- Safado, você distorce tudo.
- Considerando nossas noites, penso que ser safado também é da minha natureza – ainda rindo.
- Deixa de ser cafajeste João Marcelo.
- Adoro quando você me chama de cafajeste; me excita sabia?
- Eu devia era te dar um soco na cara, seu cretino.
- Huumm... só de imaginar essa mãozinha delicada me socando chego a arrepiar. Para com isso ou vou querer ir embora já desse shopping.
- Ainda vou te domesticar João Marcelo.
- Se me domesticar querida, logo perderá o interesse por mim.
- Preciso domar nem que seja só o seu olhar.
- Você sabe que me mudar, mudaria o cara por quem se apaixonou. O que te encanta em mim deixaria de existir.
- Eu estou falando sério. Você não me leva a sério né?
Mudando o tom – Levo sim Cris.
- A gente tá junto não tá?
- Claro que sim. Não é a sua mão que estou segurando? Não foi na sua cama que amanheci?
- Hoje né?
- Meu anjo, que insegurança boba é essa agora?
- Você me deixa assim. Não pode ver uma perua peituda de saltos altos jogando os cabelos que fica todo assanhado.
- Minha linda, essa é você.
- Não sou perua.
- Mas tem seios lindos, e seus cabelos, especialmente quando despenteados, são uma festa para os meus olhos.
- Festa para os seus olhos é um par de pernas.
- As suas são perfeitas; minha festa particular quando envolvem minha cintura.
- Você olha pra tudo que é mulher.
- Pode ser, mas só você eu olho nos olhos.
- Você ainda me acha atraente?
- Você é um encanto de menina.
- Menina?
- Um encanto de menina e um tesão de mulher.
- Você é um filho da puta de fala mansa.
- Boca suja. Isso também me enlouquece em você.
- Você vai me deixar não vai?
- Um dia, pode ser; como pode ser que você me deixe. Além do mais, não somos eternos, um dia a gente morre e deixa tudo.
- Se for pra me deixar eu prefiro que você morra.
- Mas se a gente permanecer, vou mesmo preferir morrer primeiro. Seria muito solitário ficar por aqui sem você.
- Ah Johnnie! Você diz mentiras lindas. Me leva embora desse shopping agora. Me deu uma vontade filha da puta de te meter a mão na cara; seu cafajeste.

A. Masini

Correspondência

Oi Teté

Fiquei feliz com sua carta.

Todo dia leio um pouquinho dela outra vez e mesmo lembrando tudinho que já tinha lido ontem, fico alegre de novo.

Gostei das coisas que me contou e fiquei imaginando cada uma delas. O passeio no zoológico com a escola, a festa de aniversário da sua prima, o carro novo do seu pai, o almoço no restaurante chique. O que é um risoto?

Mas de tudo que contou, o que mais gostei, foi da sua letra. Tão redondinha, tão caprichada. A vó falou para eu tentar fazer assim também, mas não consigo.

Aqui é sempre muito quente mas a tia me faz por roupa e sapato todo dia mesmo se não for dia de escola. Ela disse que já estou mocinho para andar de cueca, mas eu só tenho 8 anos Té, não é justo.

Sabe, as coisas por aqui andam meio tristes. A vó continua doente e a tia Lucia está muito preocupada. Às vezes eu escuto ela chorando e fico com medo da vó morrer.

Semana passada eu cai da amoreira e o Seu Túlio veio me ajudar. Ralei tudo, bati a cabeça e fiz um corte no peito que saiu muito sangue mas já tô bom. A vó cuidou de mim. Eu queria poder cuidar dela também, mas não sei como.

Um dia apareceu uma casa de vespa no pé de limão lá do quintal, aí a tia Lucia pediu para o Seu Túlio tirar porque ela tem medo da picada da vespa. Então eu ofereci para ajudar e a tia disse que não, que eu não sabia fazer aquele serviço. Então, enquanto o Seu Túlio fazia uma tocha pra por fogo na casinha das vespas, eu peguei uma chiringa de carnaval, enchi de álcool e espirrei na casa das vespas. Deixei o álcool escorrer pelo tronco do limoeiro e pus fogo. Puts, fez um fogaréu e o Seu Túlio veio correndo apagar.

Foi engraçado, mas a tia ficou muito, muito brava comigo, disse que eu podia ter me machucado. Ela acha que eu não sou esperto. Daí a vó falou com ela e ela acalmou, me deu um abraço apertado e um monte de beijo. Não entendi nada mas foi gostoso.

Sabe, acho que vou fazer um canteiro de flores para a tia Lucia. O Seu Túlio tem semente de abóbora. Eu vou pedir para ele me dar algumas e faço um jardim. Você já viu a flor da abóbora? É amarela e muito bonita, quando eu for de novo aí para São Paulo eu levo uma pra você. E depois, quando nascer as abóboras, a vó faz doce. Eu levo pra você também, se sobrar.

Eu queria escrever mais, mas eu já fiquei com a mão cansada, o que é uma pena, porque eu queria te contar do ninho que a coruja fez lá no terreiro, da lagarta colorida que eu achei na horta e a vó disse para não matar porque ela vai virar borboleta, do cachorrinho de três patas que eu ví quando voltava da escola, de uma noite que a lua ficou tão grande, tão grande, que deu vontade de chorar, mas eu não chorei.

Tchau Té, até a próxima carta.

João Marcelo

A. Masini

Um Cavaleiro que gostava de bananas

– Tia Lucia, agora eu vou morar aqui com a senhora?
– Vai sim querido, pelo menos até a vovó sair do hospital.
– A minha vó vai melhorar né tia?
– Eu espero que sim querido, mas, peça por ela nas suas orações.
– A vó me ensinou a oração do anjo da guarda. Essa serve tia?
– Serve sim querido.

Dizendo isso a tia abraçou o menino e ela própria fez um pedido a Deus por aquele garoto tão jovem e tão solitário. Lucia não era uma tia próxima; vivia na cidade e só tinha encontrado o filho de sua irmã ausente uma única vez quando em visita à casa de sua mãe agora enferma. Se não estivesse tão compadecida com a situação do sobrinho, oraria por si mesma, pois não tinha a menor ideia de como cuidaria daquele menininho de olhos assustados.

– Tia, eu posso dormir com a senhora essa noite?
– Pode sim querido. Assim faremos companhia um para o outro.
– Eu dormia sozinho na casa da vó, mas lá meu anjo da guarda me protegia.
– O seu anjo da guarda estará sempre onde você chamar por ele querido.
– Hoje não. Hoje eu pedi para ele ir cuidar da vó. Ele vai dormir no hospital com ela.
– Você é um menininho muito especial João. Agora vamos dormir porque o dia foi muito cansativo.
– Tia, posso tomar um Nescau e comer uma banana antes de dormir? Eu não gosto de dormir de estomago vazio. A vó disse que não faz bem.
– Claro querido, mas acho um pouco tarde para bananas. O que acha de Nescau com bolacha? É mais saudável.
– O que é saudável tia?
– É aquilo que faz bem para o seu corpo.
– Ah, entendi. Mas eu gosto tanto de banana.
– Tudo bem então anjo, pode comer uma banana. Você se lembrou de pegar sua escova de dentes?
– Ahã.

Dormiram abraçados naquela noite.

– Que cheiro bom é esse tia?
– Querido, descalço aqui na cozinha?
– É que acordei e não vi a senhora na cama, ai senti esse cheirinho de visita.
Risos – Não é visita querido, é café. Vai por uma roupa e se calça para a gente tomar café da manhã.
– Lá na vó eu ficava assim mesmo.
– Lá é mais quentinho, aqui faz frio. Além do mais, na cidade, os menininhos não costumam ficar só de cueca.
– Tá bom tia, já volto.
Ante a demora do menino a tia resolve checar e o encontra estático diante da janela da sala.
– João, algum problema querido?
– Tia, naquela casa ali da frente, tem uma menina de cabelo comprido tão bonita. Igual a princesa que a vó me mostrou no livro.
– Ah, é a Ester, filha da Verinha. Ela é uma fofa. Um pouco mimada, mas é mesmo lindinha.
– Ester? Nunca ouvi esse nome. Não é muito bonito. Posso “chamar ela” de Teté?
– A gente não diz “chamar ela” querido e sim, chama-la. Não sei se pode, mas, quando a encontrarmos, você pergunta se ela concorda.
– Nós vamos encontrar com ela?
– Depois do café da manhã, podemos ir até a casa dela para conhecê-la. O que acha?
O menino nem respondeu, saiu em disparada em direção ao quarto. Voltou ainda descalço, mas agora vestindo a calça do pijama e uma mantinha amarrada ao pescoço.
– O que é isso querido?
– Fui por minha roupa de “cavalero”.
– Cavaleiro querido.
– Cavaleiro?
– Sim, se você está pensando naqueles homens montados a cavalo é cavaleiro que se diz.
– Isso, com cavalo, espada e lança.
A tia sorriu da pose de herói do sobrinho com mãozinhas na cintura e antes que pudesse dizer qualquer outra coisa, o menino seguiu:
– Tia, eu não tenho cavalo, nem espada.
– Mas para quê você precisa de cavalo e espada para ir conhecer a “Teté”?
– Para “proteger ela” daquele homem de barba que fica na entrada da vila.
– Querido, você não precisa protege-la daquele homem, ele é o vigia da nossa vilinha. O nome dele é Jorge.
– Protegê-la. Jorge?
– Sim, como o São Jorge que tem no oratório da vovó. São Jorge era cavaleiro também sabia?
– Sério tia? Com cavalo e espada?
– Sim, cavalo, espada e lança.
- O homem de barba tembém?
- Não querido, o Sr. Jorge nosso vigia não tem espada mas está lá para nos proteger, não precisa ter medo dele. Ele é calado, mas é boa gente.
– Calado?
– Sim, fala pouco.
– Por que?
– Acho que prefere assim.
– Pra ser cavaleiro tem de ser calado tia? Acho que a princesa Teté não vai gostar de mim então.
– Eu acho que ela seria muito boba de não gostar de você só porque você é falante e não tem um cavalo.
– Eu queria levar um presente pra ela tia. Um presente de princesa. A senhora acha melhor levar uma banana ou uma bolacha, que é mais saudável?

A. Masini

Monstruosamente sublime

O amor mais sublime já visto nas telas,
merecia a declaração mais sublime já vista nas telas:

 

 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Onde vivem os Monstros” - Spike Jonze
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Banho de/na consciência

- Dorme aqui hoje Alice, já é tarde. Pra quê ir embora agora?

- Melhor não querido, tenho de estar em casa cedo.

- Amanhã é sábado, o que você tem pra fazer?

- Fiquei de levar minha mãe ao mercado.

- Ponho o relógio para despertar as oito, enquanto você toma um banho eu faço o café e no máximo as nove você está em sua casa.

- Te conheço mocinho, você não vai me deixar sair da cama com essa facilidade.

- Convencida.

- Além do mais você ronca.

- Tá doida? Até parece.

- Doida nada, todo mundo sabe que você ronca.

- Ok, você dorme no outro quarto.

- Bobo, se for para dormir no outro quarto eu durmo no meu.

- Li, eu fico preocupado de você ir embora sozinha a essa hora.

- Você é um fofo, mas prefiro não acordar ao seu lado.

- Agradeço pela honestidade Alice mas, porra, isso machuca sabia?

- A gente já falou sobre isso.

- Você acha mesmo que o Gabriel jamais desconfiou de quê já ficamos juntos?

- Ele te perguntou alguma coisa?

- Não. Claro que não. Mesmo que perguntasse.

- Não sei se ele é discreto ou não tá nem ai.

- Você ainda gosta dele né?

- Você nem imagina o quanto. Por isso não quero viver a experiência de acordar ao lado de outro cara.

- Por que você ainda transa comigo Alice?

- Porque confio em você e sei que você sabe separar essas coisas.

- Será que sei? Eu adoro transar com você, mas não me sinto mais confortável com essa situação.

- Tá bom, tá bom. Transo com você porque você é gostoso.

- Eu falei sério Li. Você não é como as outras.

- Mas é justamente por saber que para você não sou como as outras que gosto de estar com você. Não estou te entendo. O que o incomoda?

- Sei lá, a gente tem tanta intimidade, mas você é apaixonada pelo meu melhor amigo.

- Ele só me vê como amiga, a irmã morena dele, como ele já disse tantas vezes. Você, apesar de amigo, me vê também como mulher.

- Na verdade não é por ele, é por mim.

- Xi, que papo é esse? Você se sentindo usado?

- Ah, cala a boca. Não é nada disso.

- Fala sério, você tá incomodado por que eu sou apaixonada pelo Gabriel ou por que nunca me apaixonei por você?

- Ridícula. A gente não daria certo Alice. Nos conhecemos bem demais. Em alguns aspectos somos até bem parecidos.

- Isso é verdade. Não daríamos certo. Especialmente porque você não conseguiria me enrolar né? (risos)

- Você e o Anjo são minha família. Não gosto nem de pensar que eu poderia magoar um de vocês. Qualquer um de vocês.

- O que está havendo Johnnie? Fala comigo. Até hoje você não me disse por que se mandou para aquele fim de mundo.

- A vida tá passando Li. Tenho me questionado quanto ao tipo de vida que tenho levado.

- Ô querido, será que enfim o meu menino está amadurecendo?

- (risos)... vai tomar banho Alice. Palhaça.

- Vou, literalmente. Depois vou-me embora.

- Teimosa pra cacete viu. Tá certo, tomamos um banho depois eu te acompanho até sua casa.

- Tomamos não senhor. Eu aceito que me acompanhe, se for para me deixar ir embora, mas o banho eu vou tomar sozinha.

- Ah Li, deixa de ser ruim pra mim. Prometo que me comporto.

- Promete né?

- Prometo.

- Então vamos, mas vai ter de se comportar mesmo. E me obedecer.

- Huummm, adoro te obedecer, principalmente no banho.

- Safado. Pelo visto sua crise de consciência já passou né?

- Pois é, passou. Assim que te imaginei ensaboada.

A. Masini

Resgate

– Anjo?
– Johnnie.
– Tá tomando o quê querido?
– Gim-tônica.
– Meu pai dizia que isso é perfumaria.
– Tinha razão, tem cheiro de flor. Você não tinha sumido?
– Por uns tempos, mas já voltei. E você, vai continuar se escondendo?
– Ainda não quero me mostrar.
– Entendo. Alguma coisa que eu possa fazer?
– Pede alguma coisa para beber e me faz companhia. Me conta do seu retiro.
– Passarinho, me traz um Jack com gelo.
– Jack Daniel’s a essa hora Johnnie?
– Desde que horas você tá bebendo?
– Sei lá. Que horas são?
– Acho que umas oito, oito e meia.
– Você continua não usando relógio?
– E você pelo visto deixou de usar.
– O que é o tempo Johnnie?
– Não sei Gabriel. Sou o porra louca lembra? Você é que é o cara do pensamento profundo, das ideias filosóficas.
– Tanta preocupação com o “bom”, com o “ético”. Pro inferno tudo isso. Passarinho, traz um Jack pra mim também.
– Até que enfim Gabriel, abandonando o estoicismo para abraçar o hedonismo – risos.
– Você continua burro Johnnie, hedonismo tem a ver com a felicidade advinda do prazer. Eu não me sinto nem um pouco feliz atualmente.
– Advinda é? Ah... acho que entendi – pegando o copo do amigo e olhando dentro do mesmo – achei que fosse a felicidade que você estava procurando lá no fundo.
– Eu te convidei para me acompanhar na bebida, não para me aporrinhar com seu julgamento obtuso.
– Ok, tentarei não ser obtuso. Clarezaaa, você está aí? – ainda olhando para dentro do copo do amigo.
– Vai se foder Johnnie, o que você tá querendo? – tomando o copo da mão do amigo.
– Beber com você como bebíamos antes e você tentava me ensinar coisas como conduta moral ou o quanto vale a pena viver de forma ética.
– Desculpa. Pelo jeito aprendeu alguma coisa. Você está certo, estou mesmo me sentindo hedonista, na concepção mais rasteira do termo.
– Ela te tirou tanto assim é?
– Me deu muito, tanto que não sei calcular, mas levou tudo consigo, o quê trouxe, o quê eu tinha; e pior, o quê acreditei que criávamos juntos.
– O que é seu continua aí irmão. Nesse seu coração enorme, nesse espirito iluminado, nas tantas estórias de que é composta a sua história de vida. Seus valores Gabriel. A gente não te chama de “anjo” só por conta do seu nome.
– Nefelin seria mais apropriado.
– Você se sentirá melhor se eu ficar com peninha? Deixa de ser chorão. Somos cascudos, lembra?
– Me sinto perdido. Ela era a motivação dos meus passos, minha força e coragem, meu norte.
– Sabe que sempre gostei mais do sul?
– Sem ela me sinto sem rumo. Me sinto de joelhos.
– É agora que jogo a toalha?
– Estou cansado.
– Passarinho, traz um energético pro Anjo aqui.
– Vai se foder Johnnie...
– De novo?
– ...tá aí me criticando mas você saiu de cena por quanto, cinco, seis meses?
– É, acho que foi mais ou menos isso.
– Então me dá um tempo porra. Eu preciso. Eu não fiz um plano “B” entende? Jamais pensei que fosse precisar.
– Entendo sim irmão. Só não espere que eu tenha peninha de você. Eu voltei e quero meu parceiro de volta também. Escuta. Tá escutando?
– Escutando o quê seu doido?
– A vida irmão; a vida nos chamando.
– Você é muito louco mesmo né? Porra, você fez falta sabia? Me dá um abraço.
– Também senti a sua Gabriel. Não estava feliz no “exilio”, não tinha com quem brigar – risos.
– Por onde andou?
– São José dos Ausentes. Que por sinal é no Sul.
– Caralho Johnnie, até o nome é deprê.
– Deprê nada, só é como eu me sentia, ausente.
– Me conta?
– Um dia conto; mas não hoje. Estou com fome, você não?
– É, comeria alguma coisa sim. O que você acha de irmos à Tratoria tomar um brodo?
– Seguido de um filé?
– Com espaguete.
– Perfeito. Vamos no seu carro. Mas eu dirijo; porque você está breaco.
– Você está sem carro?
– Estou de moto, mas não quero correr o risco de você vomitar nas minhas costas. Bora lá chorão, procurar a tal da ataraxia num prato de macarrão.

A. Masini

Persistência

- Você não vai me deixar dormir né?
- Deu saudade.
- Sei. Você não tem limites.
- Poxa Vivi, no começo do namoro você adorava minha falta de limites.
- Anjo, ainda adoro, mas são duas da madrugada. Logo tenho de levantar, tenho de trabalhar amanhã, digo, hoje.
- Ah querida, você já acordou mesmo.
- Não. Eu preciso dormir.
- Posso ficar aconchegado em você então?
- Com essa coisa me cutucando? Não mesmo. E para de me encoxar. Que coisa!
- Ah minha linda, tô sem sono.
- Então arruma outra coisa pra se distrair, porque eu vou dormir.
- Gosto tanto do seu corpinho.
- Tira a mão João Marcelo e para de fungar no meu cabelo.
- Mas delicinha, qual o problema de dormirmos abraçados?
- Eu preciso descansar. Vira pra lá seu tarado.
Dando-lhe as costas - Chata.
...

- Não acredito. Que porra é essa agora?
- Massaginha, para você se sentir descansada.
- Massaginha é o cacete João Marcelo. Me deixa dormir.
- Poxa Vivi, você adorava que eu massageasse seus pezinhos.
- Ainda adoro, mas depois do banho.
- Frescura, eu gosto do cheirinho dos seus pés.
- Que cheirinho seu cretino? Cuido muito bem dos meus pés.
- Claro que cuida gostosa, mas não tem jeito, o corpo da gente cheira mesmo. Eu não ligo não.
- É, eu sei que você não liga não. Vive querendo beijar minhas axilas.
- É mó bom né? Suas axilas estão sempre tão lisinhas.
- Você é um tarado isso sim. Inventa cada uma.
- Eu achei que você gostasse.
- Nem tudo é legal né?
- Porra, como assim? Sério isso?
- Ah, tem lugar que você quer por a boca que vou te contar viu. Constrangedor.
- Nada a ver, isso é intimidade.
- Isso é nojento, isso sim.
- Nojento é beijar de manhã sem escovar os dentes.
- Ah, mas noutro lugar tudo bem eu por minha boca sem escovar dentes né?
- Olha que boa ideia querida. Um basquetinho agora seria ótimo para relaxarmos.
- Relaxarmos é o cacete João Marcelo, eu preciso dormir.
Emburrado e dando-lhe as costas - Chata.
...

- Ah (grito). Que porra você está fazendo agora João Marcelo?
- Carinho.
- Carinho? Beijando a minha bunda?
- Ah, foi de levinho dodói, achei que nem ia acordar.
- Pois é, seu degenerado, eu ainda estou acordada.
- Não precisa brigar amor, foi só um beijinho inocente.
- Beijinho inocente porra nenhuma, te conheço. Você é sem noção João Marcelo.
- Só porque gosto de beijar sua bunda?
- Começa com beijinho, depois quer me passar a língua.
- Huummm... é bom não é?
- É bom sim, mas na hora certa.
- E tem hora certa pra fazer amor?
- Isso que você faz com essa sua língua tem nada a ver com “fazer amor”.
- Como assim?
- Você quer me linguar em tudo que é lugar. Na bunda, atrás dos joelhos, nas palmas das mãos, nas solas dos pés. Até nos olhos. Isso é tara.
- É desejo Vivi.
- Você se descontrola.
- Você que me descontrola querida.
- Isso é compulsão.
- Não Vi, isso é paixão.
- Você não tem limites.
Sussurrando - O que sinto por você é que não conhece limites minha senhora.
- Tarado.
Ainda sussurrando - Amada.
Rendida - Desisto, além de tudo você sempre escolhe bem as palavras.
- Vem cá então minha miudinha, vem pro seu lugar no meu abraço.
- Ah Johnnie..., seu canalha... me beija, me beija nas axilas.

J.S. (A. Masini)

Efeitos da Primavera

Me considero um sujeito observador, especialmente quanto às belezas que por sorte surgem em meu caminho.

Há dias porém venho me questionando se em anos anteriores minha acuidade esteve comprometida ou se é Primavera deste que resolveu se mostrar mais vaidosa, mais estimulante e inspiradora. Mais eufórica. Melhor dizendo, mais inebriante.

Todavia, algumas sensações quando descritas em palavras por quem com elas não nutre integral intimidade, assumem tradução muito aquém do que realmente são e ficam, então, empobrecidas, desprovidas da grandiosidade com que foram forjadas; injustamente envoltas na mesma opacidade do espirito sem criatividade que as tentou, por seus parcos meios, descrever.

Para não correr tal risco, recorrerei a um termo que embora tangente ao calão, não deixará dúvida qualquer quanto ao quê tenho sentido ao ver como tudo que é floral tem se apresentado repleto de flores de setembro pra cá. Tesão. Sim, tesão nos olhos, nos pulmões, no plexo solar, na alma.

Tesão primaveril que invade o corpo através dos sentidos, reverbera nos ossos e aflora na pele em ondas de arrepios.

Tesão pelas formas, pelas cores, pelos aromas, pelos sabores, tesão que imagino se estampe mais claramente nas flores porém distante de encerrar-se nelas vez que está no ar, na brisa, no sereno. Nas manhãs frescas e nas noites quentes.

Tesão tão bem traduzido no alvoroço dos casais de maritacas que toda manhã revoam por meu bairro, nos apelos afinados do sabiá madrugador que vara as noites as enchendo de música, na avidez das abelhas que invadem fecundas os meandros aromáticos das orquídeas, na lua que brinca de mostra esconde com fiapos de nuvens como se esses fossem lenços de seda fina, na luz pálida desse mesmo luar que fria, ao tocar a pele da morena, ganha calor e cores únicas, no decote generoso das meninas que exibem taças onde os meninos imaginam dessedentar seus devaneios.

E por ai vai, tesão feito e efeito de tudo isso que a primavera traz em seu bojo formando essa alquimia catalisada por luz, matizes e perfumes. Uma energia diferente, perceptível em tempo integral, até mesmo durante o sono, quando em sonhos permeados de êxtase, nos sentimos carregar aturdidos para lugares exóticos de atmosfera densa e sensações singulares de prazer.

É, essa Primavera que tinha tudo para ser nada, tem-se revelado amiga generosa, amante carinhosa; mais do que apenas tela, palco, farto em festa para sentidos atentos.















J.S. (A. Masini)

No "Dia D", detono aqui, um espaço para Drummond


A um ausente

Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.
Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
porque o fizeste, porque te foste.

Carlos Drummond de Andrade

Carinho balsâmico

Já conhecia o Sebastião, “Tião para os de casa” como ele dizia; mas só tive o prazer de conhecer a Dona Sebastiana, sua mulher e dona da casinha mais graciosa em que já tive oportunidade de estar, em razão de uma queda de uma égua sem noção (meu orgulho de menino da cidade não permitiria reconhecer à época que o sem noção era eu mesmo).

Era ainda jovenzinho, dezesseis, dezessete anos e tipicamente tomado de paixão pelas aventuras daqueles tempos dos quais não sei dizer exatamente porque fui me lembrar agora  mas dos quais me sinto feliz por reviver.

Tião era caseiro em uma fazenda que costumava visitar durante as férias escolares e meu programa preferido era montar. Sentir a energia de um animal muito maior do que eu mesmo, uma força da natureza submetida aos comandos do meu corpo me fazia sentir especial e o ar puro que inflava meus pulmões naquelas oportunidades era como um reforço do Sopro Divino que deu vida a todos nós.

Obviamente que o mais prudente teria sido antes aprender, ao menos um pouco, sobre os riscos envolvidos a fim de tentar evita-los mas, por aqueles prazeres, especialmente em razão de minha imaturidade e completa inexperiência, me deixei levar despreocupado, credor de que tamanho bem estar jamais poderia me expor a qualquer perigo.

Naquela tarde sai pelo pasto apreciando o silêncio do entardecer, coração leve e alma livre, completamente distraído e confiante. Por sorte não estava trotando, exceto na alegria, essa sim galopava incontida dentro de mim quando, sem motivo aparente, a tal égua que em tantas vezes, dócil e submissa se permitiu por mim ser montada, assustou, me jogou ao chão e fugiu em disparada.

Me lembro de ter tentado levantar mas alguma coisa me mantinha no chão. Era o Tião, que antes mesmo de ter-me dado conta do ocorrido já estava lá, como um anjo da guarda me socorrendo.

- Calma menino, o tombo foi feio.

- De onde você veio Tião?

- Eu estava lá embaixo e vi quando a eguinha te jogou pra cima e foi embora correndo assustada. Fiquei preocupado quando percebi que você não se levantou, então vim ver o que houve.

- Eu nem te vi chegar.

- Você consegue se erguer?

- Sim, sem problemas. – Mas bastou tentar me levantar para senti que alguma coisa estava errada, não consegui me manter de pé e cai de joelhos.

- Senta mais um pouco menino, você bateu a cabeça.

Ficamos ali mais algum tempo, eu tentando entender e ele me amparando com um sorriso de quem sabia que tudo terminaria bem. Não sentia dor aqui ou ali, mas sim aqui e ali, sentia o corpo todo machucado, inclusive a segurança e a autoestima.

Quando consegui me erguer o sol já era posto e, amparado pelo Tião, fomos á sua casa onde Dona Sebastiana nos aguardava. Era tudo muito silencioso e eu me sentia com muito sono. Pedi ao Tião para me levar para a casa da fazenda onde costumava dormir mas eles se negaram e me fizeram deitar em sua cama.

Na manhã seguinte despertei com o sol adentrando as janelas, todas graciosamente enfeitas por cortininhas de chita delicadamente bordadas. A fronha e os lençóis tinham perfume de roupa recém lavada quarada ao sol e de algum lugar que imaginei fosse a cozinha, vinha um cheiro tão bom de café fresco com bolo quente que de pronto me pôs de pé.

O chão era de “vermelhão”, mas tão bem limpo e encerado que parecia um tipo de mármore rubro. As paredes todas impecavelmente brancas multiplicavam a luz que vinha das janelas e a atmosfera naquela casa traduzia paz e aconchego.

- Bom dia menino, já acordou?

Era Dona Sebastiana, uma senhora morena de feições muito bonitas e serenas, mas marcadas pela vida dura. Tinha uma voz delicada com sotaque honesto de gente sem maldade, gente de bom coração. Gente do campo que vive essencialmente do trabalho. Trabalho e serenidade que se refletiam em tudo naquela casa.

- Você está bem menino?

- Bom dia Dona Sebastiana, estou bem sim, um pouco sonado apenas.

- Vem, tem café.

Fui à pequena cozinha onde, acima da mesa de madeira polida, adornada por uma tolha com bordas de crochê, havia um bule de ágata com café fresco e um bolo ainda fumegando na assadeira.

Dona Sebastiana me serviu e ficou em pé me observando comer.

- Não vai se acomodar Dona Sebastiana?

- Já tomei meu café menino. Fique à vontade.

Agradeci e ficamos em silêncio.

O que houve depois são detalhes da hospitalidade, carinho e generosidade daquele casal que a vida, por meio de um acidente, me permitiu conhecer. Não que tais detalhes tenham sido menos significativos, mas o principal do que desejei abordar aqui já está descrito, o revés transformado em lembrança feliz por mãos verdadeiramente acolhedoras e honestamente amorosas. As mãos de um casal de bom coração, cujo gesto de oferecer sua acolhida singela a um menino machucado, foram mais marcantes que as cicatrizes do tombo. “O amor ajuda a cicatrizar as feridas, é um lenitivo para nossas angústias...”.

A. Masini

Às vezes

Às Vezes


Às vezes,
minhas palavras não são capazes de traduzir com clareza tudo em que penso,
aquilo que sinto
e menos ainda o quê me vai na alma...
Às vezes,
meus pensamentos correm rápidos demais e não consigo acompanhá-los,
meu coração bate rápido demais,
como se desejasse fugir de dentro de mim,
ganhar independência, vida própria.
Às vezes, é minha alma que deseja correr,
partir para longe,
longe desse coração que sente e se ressente,
longe desse corpo que envelhece e se condói,
longe desses tantos pensamentos conflitantes,
longe dessas palavras que se perdem em enganos grosseiros
longe de tudo que macule o amor puro e branco
que minha alma tem pela vida.

A. Masini


Um mundo novo por detrás das palpebras

Um mundo novo por detrás das palpebras


Te enxergo tão bem quando de olhos fechados
que quando os abro,
nos efemeros instantes que ainda dura o lume do seu sorriso,
um mundo novo se descortina diante minha retina.
Nele, tudo é mais vivo
tudo é mais iluminado
tudo é mais colorido.
E minha vida,
a que ainda restou dentro de mim
me diz que esse bocado de existência,
sensivel apenas por suspiros
ou lágrimas fugidias desses mesmos olhos quando ha mais tempo abertos,
pode valer a pena
se o piscar dos meus olhos for mais lento, mais freguente
porque só quando os fecho
consigo observar o que há dentro de mim,
no centro do que sou.
Lá, você ainda permanece a mesma,
que um dia por mim também se apaixonou.

A. Masini


Apartados (antes mesmo de unidos)

Aparados



De onde vem esse seu poder de transformar meus dias? De reunir cada uma das nuvens escuras de chuva e fazê-las dissipar, para em seguida, surgir o sol, iluminando cada canto escuro de minha alma atormentada?

De onde vem esse encanto, que me faz depositar cada uma das minhas esperanças nos sonhos que seus sorrisos me promovem?

De onde vem esse sentimento que me invade os olhos, corre por minhas veias, toma meu corpo e se instala em festa em meu coração a cada oportunidade que tenho de te ver?

Que coro angelical é esse que canta pra mim sempre que te ouço?

Que mulher é você, que parece ter sido feita sob medida para meus abraços, beijos e carinhos?

Que vida afinal é essa, que apesar dessas tantas coisas que me põem na sua direção, ainda assim nos manteve apartados de tudo isso?



A. Masini