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Depois de passar pelo homem sonolento do guichê, chegou à plataforma da estação ferroviária ainda antes dos primeiros raios de sol, aguardados com ansiedade vez que era muito fria aquela manhã silenciosa de fim de agosto.
 
Ajeitou-se como pode no banco de madeira sob a luz amarela da única lâmpada que ali havia e encolheu-se tentando minimizar o açoite do vento. Trazia consigo apenas duas mudas de roupas acomodadas na mochila e as incertezas de sempre desacomodando seu coração.

Olhou novamente o relógio pendurado na estrutura de ferro que sustentava o telhado da minúscula plataforma, coisa de uns oito ou dez metros. Conferiu com o de seu pulso e sentiu que talvez tivesse sido melhor ter tentado ficar um pouco mais na cama apesar de ter passado a noite toda acordado.

Notou que próximo ao portal por onde viera, ainda mais encolhido do que ele próprio, havia um cão de rua que o observava preguiçoso. Fez um gesto com os dedos acompanhado de um som de psiu aos quais o cão respondeu levantando as orelhas e abanando a cauda uma única vez para em seguida, solenemente, meter o focinho entre seus pelos e voltar a dormir. O gesto lhe pareceu muito mais algum tipo de cortesia canina do que simpatia, o que não chagava a ser novidade vez que a maioria das pessoas daquela cidadezinha agia assim, cuidava unicamente da própria vida.
 
Havia por volta de cinco meses que se encontrava ali e acabou por se acostumar com o jeito arredio de todos. Lembrou-se que a demonstração mais espontânea de atenção veio de um senhor que ao vê-lo sair da pensão tossindo ofereceu-lhe uma bala de mel. Agradeceu a gentileza do estranho com seu sorriso mais sincero, retribuído com um espasmo de lábios acompanhado de um leve menear com a cabeça, em seguida e sem dizer qualquer palavra, foi-se embora o tal sujeito por seu caminho.

Rumou àquele lugar entre as serras para se isolar. Trazia dores que o fizeram arredio e solitário. Já não se interessava pelas pessoas de seu convívio, em especial as do trabalho. Queria ficar quieto e recuperar sua paz interior, arrancada dele em razão de escolhas erradas, frustrações decorrentes de planos precocemente interrompidos.

Decidido a esquecer-se de tudo, mesmo que lhe custasse esquecer a si mesmo, procurou o lugar mais simples para se hospedar e avisou apenas à sua amiga Alice onde estaria. Confiou a ela suas plantas e um pedido para que não o procurasse pois quando estivesse pronto voltaria.

Levou apenas o necessário. Deixou para trás os livros preferidos, que além de pesados, seriam um marco para quando voltasse. Carregou consigo porém uma gaita embora não soubesse como tocá-la. Imaginava-se, para suportar as saudades, como que em tratamento de desintoxicação, um tipo de reabilitação que o fizesse voltar a ver sentido em sua vida.

E como foram difíceis os primeiros dias e noites. As músicas, os luares, as manhãs de sol e até os silêncios traziam lembranças às quais desejava esquecer, apagar da memória, arrancar de sua estória simplesmente porque doíam. Tentava aprender novos prazeres como meditar à luz do sol, caminhar pela mata abundante naquele lugar distante, tomar banho de cachoeira e dormir ao relento coberto por estrelas. Apaixonou-se pela visão nostálgica da senhora idosa que todo final de tarde se acomodava em uma cadeira à porta de sua casa para fazer crochê. Reencontrou-se com a alegria sublime das coisas simples, mas, apesar de sentir-se bem, a paz ainda lhe escapava ante os fantasmas que insistiam em assediá-lo.

Até que na tarde do dia anterior a dona da pensão o procurou dizendo que havia chegado um telegrama. O mesmo que trazia em seu bolso e onde se lia: “Por favor volte rápido. Gabriel muito mal. Alice.”.

Gabriel, assim como a própria Alice, era para ele uma referência de amizade, um irmão de alma, aquele amigo da vida toda com quem cresceu, com quem compartilhou momentos de aprendizado e evolução mútuos. Ao ler aquela mensagem percebeu o quanto foi egoísta fazendo-se recluso daqueles que o amavam. Percebeu também que os fantasmas podem ser terríveis sim, mas apenas quando permitimos que sejam, quando os nutrimos até que se tornem maiores do que nós. Pronto ou não, a vida não espera por ninguém e seu amigo com nome de anjo precisava dele agora. Harmonizou-se então com suas dores e tomou o caminho da volta. Volta às suas origens.

Àquela altura já se ouvia o apito do trem. O sol já havia surgido e o cão, agora posto ao seu lado, abanava a cauda como quem o saúda entusiasmado.

A. Masini

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O aprendizado se dá por tentativa, erro e a correção do erro. No meu modo de ver, o erro é uma ferramenta de aprimoramento. Assim, te convido a deixar seu comentário. Abraço, Aldo

Às vezes

Às Vezes


Às vezes,
minhas palavras não são capazes de traduzir com clareza tudo em que penso,
aquilo que sinto
e menos ainda o quê me vai na alma...
Às vezes,
meus pensamentos correm rápidos demais e não consigo acompanhá-los,
meu coração bate rápido demais,
como se desejasse fugir de dentro de mim,
ganhar independência, vida própria.
Às vezes, é minha alma que deseja correr,
partir para longe,
longe desse coração que sente e se ressente,
longe desse corpo que envelhece e se condói,
longe desses tantos pensamentos conflitantes,
longe dessas palavras que se perdem em enganos grosseiros
longe de tudo que macule o amor puro e branco
que minha alma tem pela vida.

A. Masini


Um mundo novo por detrás das palpebras

Um mundo novo por detrás das palpebras


Te enxergo tão bem quando de olhos fechados
que quando os abro,
nos efemeros instantes que ainda dura o lume do seu sorriso,
um mundo novo se descortina diante minha retina.
Nele, tudo é mais vivo
tudo é mais iluminado
tudo é mais colorido.
E minha vida,
a que ainda restou dentro de mim
me diz que esse bocado de existência,
sensivel apenas por suspiros
ou lágrimas fugidias desses mesmos olhos quando ha mais tempo abertos,
pode valer a pena
se o piscar dos meus olhos for mais lento, mais freguente
porque só quando os fecho
consigo observar o que há dentro de mim,
no centro do que sou.
Lá, você ainda permanece a mesma,
que um dia por mim também se apaixonou.

A. Masini


Apartados (antes mesmo de unidos)

Aparados



De onde vem esse seu poder de transformar meus dias? De reunir cada uma das nuvens escuras de chuva e fazê-las dissipar, para em seguida, surgir o sol, iluminando cada canto escuro de minha alma atormentada?

De onde vem esse encanto, que me faz depositar cada uma das minhas esperanças nos sonhos que seus sorrisos me promovem?

De onde vem esse sentimento que me invade os olhos, corre por minhas veias, toma meu corpo e se instala em festa em meu coração a cada oportunidade que tenho de te ver?

Que coro angelical é esse que canta pra mim sempre que te ouço?

Que mulher é você, que parece ter sido feita sob medida para meus abraços, beijos e carinhos?

Que vida afinal é essa, que apesar dessas tantas coisas que me põem na sua direção, ainda assim nos manteve apartados de tudo isso?



A. Masini