Depois de passar pelo homem sonolento do guichê, chegou à plataforma da estação ferroviária ainda antes dos primeiros raios de sol, aguardados com ansiedade vez que era muito fria aquela manhã silenciosa de fim de agosto.
Ajeitou-se como pode no banco de madeira sob a luz amarela da única lâmpada que ali havia e encolheu-se tentando minimizar o açoite do vento. Trazia consigo apenas duas mudas de roupas acomodadas na mochila e as incertezas de sempre desacomodando seu coração.
Olhou novamente o relógio pendurado na estrutura de ferro que sustentava o telhado da minúscula plataforma, coisa de uns oito ou dez metros. Conferiu com o de seu pulso e sentiu que talvez tivesse sido melhor ter tentado ficar um pouco mais na cama apesar de ter passado a noite toda acordado.
Notou que próximo ao portal por onde viera, ainda mais encolhido do que ele próprio, havia um cão de rua que o observava preguiçoso. Fez um gesto com os dedos acompanhado de um som de psiu aos quais o cão respondeu levantando as orelhas e abanando a cauda uma única vez para em seguida, solenemente, meter o focinho entre seus pelos e voltar a dormir. O gesto lhe pareceu muito mais algum tipo de cortesia canina do que simpatia, o que não chagava a ser novidade vez que a maioria das pessoas daquela cidadezinha agia assim, cuidava unicamente da própria vida.
Rumou àquele lugar entre as serras para se isolar. Trazia dores que o fizeram arredio e solitário. Já não se interessava pelas pessoas de seu convívio, em especial as do trabalho. Queria ficar quieto e recuperar sua paz interior, arrancada dele em razão de escolhas erradas, frustrações decorrentes de planos precocemente interrompidos.
Decidido a esquecer-se de tudo, mesmo que lhe custasse esquecer a si mesmo, procurou o lugar mais simples para se hospedar e avisou apenas à sua amiga Alice onde estaria. Confiou a ela suas plantas e um pedido para que não o procurasse pois quando estivesse pronto voltaria.
Levou apenas o necessário. Deixou para trás os livros preferidos, que além de pesados, seriam um marco para quando voltasse. Carregou consigo porém uma gaita embora não soubesse como tocá-la. Imaginava-se, para suportar as saudades, como que em tratamento de desintoxicação, um tipo de reabilitação que o fizesse voltar a ver sentido em sua vida.
E como foram difíceis os primeiros dias e noites. As músicas, os luares, as manhãs de sol e até os silêncios traziam lembranças às quais desejava esquecer, apagar da memória, arrancar de sua estória simplesmente porque doíam. Tentava aprender novos prazeres como meditar à luz do sol, caminhar pela mata abundante naquele lugar distante, tomar banho de cachoeira e dormir ao relento coberto por estrelas. Apaixonou-se pela visão nostálgica da senhora idosa que todo final de tarde se acomodava em uma cadeira à porta de sua casa para fazer crochê. Reencontrou-se com a alegria sublime das coisas simples, mas, apesar de sentir-se bem, a paz ainda lhe escapava ante os fantasmas que insistiam em assediá-lo.
Até que na tarde do dia anterior a dona da pensão o procurou dizendo que havia chegado um telegrama. O mesmo que trazia em seu bolso e onde se lia: “Por favor volte rápido. Gabriel muito mal. Alice.”.
Gabriel, assim como a própria Alice, era para ele uma referência de amizade, um irmão de alma, aquele amigo da vida toda com quem cresceu, com quem compartilhou momentos de aprendizado e evolução mútuos. Ao ler aquela mensagem percebeu o quanto foi egoísta fazendo-se recluso daqueles que o amavam. Percebeu também que os fantasmas podem ser terríveis sim, mas apenas quando permitimos que sejam, quando os nutrimos até que se tornem maiores do que nós. Pronto ou não, a vida não espera por ninguém e seu amigo com nome de anjo precisava dele agora. Harmonizou-se então com suas dores e tomou o caminho da volta. Volta às suas origens.
Àquela altura já se ouvia o apito do trem. O sol já havia surgido e o cão, agora posto ao seu lado, abanava a cauda como quem o saúda entusiasmado.
A. Masini
Notou que próximo ao portal por onde viera, ainda mais encolhido do que ele próprio, havia um cão de rua que o observava preguiçoso. Fez um gesto com os dedos acompanhado de um som de psiu aos quais o cão respondeu levantando as orelhas e abanando a cauda uma única vez para em seguida, solenemente, meter o focinho entre seus pelos e voltar a dormir. O gesto lhe pareceu muito mais algum tipo de cortesia canina do que simpatia, o que não chagava a ser novidade vez que a maioria das pessoas daquela cidadezinha agia assim, cuidava unicamente da própria vida.
Havia por volta de cinco meses que se encontrava ali e acabou por se acostumar com o jeito arredio de todos. Lembrou-se que a demonstração mais espontânea de atenção veio de um senhor que ao vê-lo sair da pensão tossindo ofereceu-lhe uma bala de mel. Agradeceu a gentileza do estranho com seu sorriso mais sincero, retribuído com um espasmo de lábios acompanhado de um leve menear com a cabeça, em seguida e sem dizer qualquer palavra, foi-se embora o tal sujeito por seu caminho.
Rumou àquele lugar entre as serras para se isolar. Trazia dores que o fizeram arredio e solitário. Já não se interessava pelas pessoas de seu convívio, em especial as do trabalho. Queria ficar quieto e recuperar sua paz interior, arrancada dele em razão de escolhas erradas, frustrações decorrentes de planos precocemente interrompidos.
Decidido a esquecer-se de tudo, mesmo que lhe custasse esquecer a si mesmo, procurou o lugar mais simples para se hospedar e avisou apenas à sua amiga Alice onde estaria. Confiou a ela suas plantas e um pedido para que não o procurasse pois quando estivesse pronto voltaria.
Levou apenas o necessário. Deixou para trás os livros preferidos, que além de pesados, seriam um marco para quando voltasse. Carregou consigo porém uma gaita embora não soubesse como tocá-la. Imaginava-se, para suportar as saudades, como que em tratamento de desintoxicação, um tipo de reabilitação que o fizesse voltar a ver sentido em sua vida.
E como foram difíceis os primeiros dias e noites. As músicas, os luares, as manhãs de sol e até os silêncios traziam lembranças às quais desejava esquecer, apagar da memória, arrancar de sua estória simplesmente porque doíam. Tentava aprender novos prazeres como meditar à luz do sol, caminhar pela mata abundante naquele lugar distante, tomar banho de cachoeira e dormir ao relento coberto por estrelas. Apaixonou-se pela visão nostálgica da senhora idosa que todo final de tarde se acomodava em uma cadeira à porta de sua casa para fazer crochê. Reencontrou-se com a alegria sublime das coisas simples, mas, apesar de sentir-se bem, a paz ainda lhe escapava ante os fantasmas que insistiam em assediá-lo.
Até que na tarde do dia anterior a dona da pensão o procurou dizendo que havia chegado um telegrama. O mesmo que trazia em seu bolso e onde se lia: “Por favor volte rápido. Gabriel muito mal. Alice.”.
Gabriel, assim como a própria Alice, era para ele uma referência de amizade, um irmão de alma, aquele amigo da vida toda com quem cresceu, com quem compartilhou momentos de aprendizado e evolução mútuos. Ao ler aquela mensagem percebeu o quanto foi egoísta fazendo-se recluso daqueles que o amavam. Percebeu também que os fantasmas podem ser terríveis sim, mas apenas quando permitimos que sejam, quando os nutrimos até que se tornem maiores do que nós. Pronto ou não, a vida não espera por ninguém e seu amigo com nome de anjo precisava dele agora. Harmonizou-se então com suas dores e tomou o caminho da volta. Volta às suas origens.
Àquela altura já se ouvia o apito do trem. O sol já havia surgido e o cão, agora posto ao seu lado, abanava a cauda como quem o saúda entusiasmado.
A. Masini
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O aprendizado se dá por tentativa, erro e a correção do erro. No meu modo de ver, o erro é uma ferramenta de aprimoramento. Assim, te convido a deixar seu comentário. Abraço, Aldo