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O amor da coragem que os poetas desconhecem

Seus olhos, de um azul delicado porém opaco, jaziam fixos no teto marcado com manchas de infiltração. Miravam um ponto invisível como que perdidos n’alguma memória ainda retida mas só por ela perceptível. A sala onde se encontrava confinava uma atmosfera pesada cheirando a clausura e, afora o barulho dos restos de água da chuva gotejando na calha de lata lá fora, tudo o mais era silêncio.

Seu semblante era sereno e resignado apesar do evidente cansaço que denotava e a boca entreaberta, pálida como toda sua pele frágil, lhe conferia a aparência de quem precisa de socorro mas já não dispõe de forças, voz ou até mesmo desejo para pedir.

Ficamos ali observando aquela senhora debilitada e silenciosa enquanto esperávamos pela chegada do meu tio, seu marido. Nos entreolhávamos aturdidos vendo no olhar um do outro o quanto cada um de nós se encontrava surpreso com sua situação.

Sai da casa controlando meu desejo de correr, me esforçando para compreender que não havia como fugir da impotência que me tomava conta. Parei na calçada e voltando meu olhar ao sobrado pude observar que tudo o mais havia perdido importância para seus moradores. O carro quebrado abandonado na garagem indicando há muito tempo não ser usado; o jardim tomado por matos, os beiras dos telhados apodrecidos, a veneziana da janela sem fecho que batia contra a parede ao sabor do vento, a ferrugem abundante no gradil do portão de ferro bem como na corrente que o prendia, as pinturas das paredes, onde ainda haviam, maculadas das manchas características de humidade.

Tentava desviar os pensamentos tristes observando um cachorrinho que me olhava da laje na casa vizinha quando alguém me chamou à atenção para meu tio, que trazendo com esforço duas pesadas sacolas, vinha chegando. Fui ao seu encontro, o abracei, trocamos um beijo, tomei as sacolas de suas mãos e sorrindo pela alegria do reencontro caminhamos juntos até sua casa onde os outros o aguardavam.

Ele cumprimentou a todos com carinho e alegria e depois, com calma, voltou-se para sua mulher acamada. Fez-lhe um carinho nos cabelos brancos, já ralos mas muito bem penteados, sorriu-lhe e perguntou como se sentia. Ela retribuiu olhando-o nos olhos, ofereceu-lhe um sorriso puro como o de uma criança e por todo o tempo que durou aquele momento a vida se instalou novamente em minha tia.

Ele a abraçou com paixão, mas com a delicadeza de um ourives, beijou-lhe o rosto e a testa, voltou-se para nós e nos convidou a irmos à sua cozinha para um copo d’água, já que o calor era forte.

No caminho até lá, passando por outros cômodos da casa, pude notar o mesmo descaso, isto é, as coisas abandonadas nos cantos, livros empoeirados sobre a estante, vasos com plantas e terra secas. Tudo era abandono e esquecimento.

Já na cozinha meu tio nos contou que há oito meses se dedicava quase que unicamente aos cuidados com minha tia. Seu tempo era dividido com as roupas que necessitavam ser lavadas e passadas, a feitura dos alimentos, os horários dos remédios e os tantos cuidados de quê dependia sua mulher. Contou-nos das dificuldades em cuidá-la vez que ele mesmo já não contava com a saúde de antes; havia completado setenta e um anos há alguns dias.

Sobrou-lhe porém, naquele dia, algum tempo para as lembranças da mocidade e foi com o coração cheio de gratidão que me entreguei aos sorrisos com ele e seus irmãos ali presentes.

Antes de partirmos, uma de suas irmãs perguntou ou meu tio sobre sua fé. Ele respondeu que orava todos os dias pelo conforto de sua mulher e para receber forças a fim de continuar lhe cuidando. Ato continuo, de um dos poucos lugares na estante em que o pó não fez morada, pegou o álbum de fotografias de seu casamento e nos convidou a folheá-lo com ele as páginas que havia marcado com um papel amarelo. Em todas elas se encontravam fotografias onde apenas eles dois apareciam, sempre sorridentes e carinhosos um com o outro; naquele momento pude ver a coragem e a força pulsar revigoradas nos olhos do meu tio.

O amor quando não é lindo, é santificado.

A. (de Abreu) Masini

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O aprendizado se dá por tentativa, erro e a correção do erro. No meu modo de ver, o erro é uma ferramenta de aprimoramento. Assim, te convido a deixar seu comentário. Abraço, Aldo

Às vezes

Às Vezes


Às vezes,
minhas palavras não são capazes de traduzir com clareza tudo em que penso,
aquilo que sinto
e menos ainda o quê me vai na alma...
Às vezes,
meus pensamentos correm rápidos demais e não consigo acompanhá-los,
meu coração bate rápido demais,
como se desejasse fugir de dentro de mim,
ganhar independência, vida própria.
Às vezes, é minha alma que deseja correr,
partir para longe,
longe desse coração que sente e se ressente,
longe desse corpo que envelhece e se condói,
longe desses tantos pensamentos conflitantes,
longe dessas palavras que se perdem em enganos grosseiros
longe de tudo que macule o amor puro e branco
que minha alma tem pela vida.

A. Masini


Um mundo novo por detrás das palpebras

Um mundo novo por detrás das palpebras


Te enxergo tão bem quando de olhos fechados
que quando os abro,
nos efemeros instantes que ainda dura o lume do seu sorriso,
um mundo novo se descortina diante minha retina.
Nele, tudo é mais vivo
tudo é mais iluminado
tudo é mais colorido.
E minha vida,
a que ainda restou dentro de mim
me diz que esse bocado de existência,
sensivel apenas por suspiros
ou lágrimas fugidias desses mesmos olhos quando ha mais tempo abertos,
pode valer a pena
se o piscar dos meus olhos for mais lento, mais freguente
porque só quando os fecho
consigo observar o que há dentro de mim,
no centro do que sou.
Lá, você ainda permanece a mesma,
que um dia por mim também se apaixonou.

A. Masini


Apartados (antes mesmo de unidos)

Aparados



De onde vem esse seu poder de transformar meus dias? De reunir cada uma das nuvens escuras de chuva e fazê-las dissipar, para em seguida, surgir o sol, iluminando cada canto escuro de minha alma atormentada?

De onde vem esse encanto, que me faz depositar cada uma das minhas esperanças nos sonhos que seus sorrisos me promovem?

De onde vem esse sentimento que me invade os olhos, corre por minhas veias, toma meu corpo e se instala em festa em meu coração a cada oportunidade que tenho de te ver?

Que coro angelical é esse que canta pra mim sempre que te ouço?

Que mulher é você, que parece ter sido feita sob medida para meus abraços, beijos e carinhos?

Que vida afinal é essa, que apesar dessas tantas coisas que me põem na sua direção, ainda assim nos manteve apartados de tudo isso?



A. Masini