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De mudança

Na mochila às costas e na mala de mão, levava o que de material entendia como seu; roupas, livros, uma caixa de lápis de cor, algumas bolinhas de gude de valor sentimental, uma máquina fotográfica e uma imagem de São José; esses dois últimos itens acomodados com especial carinho; eram presentes de sua avó.  A herança tangível de uma vida ainda jovem e já tomada de saudades; saudades que naquele momento da partida se acentuavam além do imaginável.
Na lembrança carregava o cheiro das carambolas maduras à beira da represa, as tardes silenciosas com corpo largado n’água e olhos perdidos no céu, os sabores e dessabores das amoras no quintal de casa, os sorrisos, as formas e as pintas de Selminha. No coração a amizade e os tantos conselhos de “Seu Túlio”; amigo, tio, irmão mais velho, anjo de guarda tudo em um único homem. Na alma sua avó, a mãe que conheceu. O amor mais intenso que experimentou e cuja ausência recém concretizada o fazia desejar afastar-se de lá como quem foge, o que lhe dava esperanças de ver a dor da perda da avó diminuída.
Com esse cabedal de coisas e lembranças parou pela ultima vez junto ao portão de madeira, olhou a casa com a amoreira ao fundo, o quintal de terra batida onde gerações de corujas ainda nidificavam, as janelas com cortinas adornadas com o delicado crochê, trabalho de mãos que jamais o afagariam novamente, a porta por onde tantas vezes a vó lhe soprava um beijo quando se ia para a escola.
Com o mesmo pesar respondeu ao aceno de “seu Túlio” que naquele momento, contrariamente à costumeira pachorra, jazia em pé no alpendre da casa vizinha. Não soube identificar se o velho sorria ou chorava mansinho mas, com medo de que a segunda hipótese fosse a verdadeira, acovardou-se ante ao desejo de trocar com ele um outro último abraço e tentou seguir.
- Então você vai mesmo para a cidade menino?
- Vou sim “Seu Túlio”. Vou morar com a tia Lucia e estudar por lá.
- Vá com Deus então menino, mas volte de vez em quando. A vó partiu, mas eu estarei aqui sempre que precisar.
E com os olhos já encharcados, correu até aquele senhor que o viu e ajudou crescer. – Obrigado “Seu Túlio”, obrigado por tudo. O senhor é o melhor amigo que um menino pode querer. Melhor até que um cachorro.
- A comparação poderia parecer estranha para quem não te conhece filho, mas para mim, que o vi crescer, foi o elogio mais honesto que um velho poderia receber. Agora vai menino, vai que o próximo passo de sua jornada o espera. Corra para alcançar seus sonhos, são eles que nos conduzem pela vida.
E sem dizer outra palavra desenroscou-se do abraço do amigo, secou como pode os olhos e fazendo grande esforço para não olhar para trás se foi com passos rápidos.
Sentia-se sozinho e assustado ao chegar na rodoviária. Já havia viajado antes, quando sabia que naquela casinha que ficou para traz o seu retorno seria esperado. Agora era diferente, não haveria mais alguém para abraçar no regresso e a insegurança de não ter mais quem o esperasse fazia com que se sentisse um exilado.
Já era noite quando embarcou cabisbaixo no ônibus com destino a São Paulo. A maioria dos lugares estavam vazios, inclusive o seu vizinho, o que considerou uma sorte pois que preferia dormir a ter de dar atenção a alguém que eventualmente puxasse conversa. As poucas pessoas à bordo estava silenciosas e tão logo aquietou seu coração, adormeceu.
- Moço. Hei, mocinho. Você está dormindo?
Abriu os olhos e viu uma moça que o olhava por cima do encosto do banco à sua frente. Muito bonita, cabelos bem cuidados formando uma franja, olhos grandes e expressivos, pele morena clara, um sorriso suave. Demorou-se um pouco para compreender o que havia, tinha algo de surreal naquela menina o acordando daquela forma, tanto, que antes de responder, chegou a pensar se não estava sonhando.
- Eu estava dormindo sim, mas você me acordou.
- Você não acha um desperdício?
- Dormir? Claro que não. Dormir é uma necessidade.
- Mas a noite está linda lá fora. Você consegue ver a lua ai da sua janela? – E dizendo isso saiu de seu lugar e foi acomodar-se ao lado de João. – Ela está linda, ainda baixa, enorme e amarela.
- Desculpe moça, mas eu não estou de bom humor.
- Que houve?
Notando que moça não o deixaria em paz, resolveu que o melhor a fazer seria trata-la com educação.
- Estou me mudando para São Paulo e estou triste por ir-me embora.
- Então por que vai?
- Vou estudar lá.
- Aqui não há escolas?
- Há sim, mas tenho também outras razões para partir.
- Que razões?
- Querida, eu nem sei seu nome e você quer saber da minha intimidade?
- Desculpe, não imaginei que suas razões fossem de foro íntimo. De qualquer forma, me chamo Alice. – E estendo a mão macia completou. – Alice Songerie e você?
- João Marcelo Pirro. Seu sobrenome é francês?
- Não sei, soa como se fosse né? Mas tenho nada de francesa viu? E o único perfume de que realmente gosto é cheiro de banho.
- Eu adoro cheiro de banho. Gosto também de cheiro de carambola e de cheiro de chuva.
- Eu amo a chuva, principalmente as mais pesadas, com raios e tal.
- Você já viu tempestade na praia? Ouvi dizer que é fantástico.
- Não, nuca vi mas gostei da ideia. Vamos?
- Vamos onde?
- À praia. Ver uma tempestade.
- Você é doidinha né?
- Não sou doidinha. Só acho que temos uma dívida com a vida, vive-la com paixão.
- Meu desinteresse é assim tão evidente?
- Não tem cara de ser exatamente desinteresse. Está mais para solidão. Eu fiquei te olhando enquanto dormia e imaginei que poderia gostar de um pouco de irreverencia na sua vida.
- Percebeu é?
- Percebi sim. E agora que a irreverencia chegou – fez um gesto demonstrando o próprio corpo - aposto que vai ver a vida com outros olhos. Pode até se interessar mais por ela.
- E você seria essa irreverencia né? Bom, tomara Alice. Minha vida tornou-se solitária sim e isso tem sido doloroso. Sabe, você está certa, vai ser muito bom mudar o foco e sorrir para variar.
- Viu, já está mudando.
- Verdade. Gostei de você Alice. Alice Songerie.
- E eu de você;  Johnnie.
- Johnnie?
- É, João Marcelo Pirro é muito sem graça.
- Tai, gostei disso também.
Rindo – Viu como sou ótima?
- Ótima eu ainda não sei, mas tenho de concordar que você é surpreendente. Não imaginei, quando me acordou, que em tão pouco tempo de conversa você fosse me trazer luar, tempestades, viagens à praia, novos perfumes, novos sorrisos e até um nome novo. Começo a me sentir ansioso para saber mais de você e descobrir o que mais virá de nossas conversas.
- No mínimo novas surpresas Johnnie e muitos sonhos.
- Sonhos?
- Sim querido, sonhos, o combustível da vida, aquilo nos move através dela.
 
A. Masini

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O aprendizado se dá por tentativa, erro e a correção do erro. No meu modo de ver, o erro é uma ferramenta de aprimoramento. Assim, te convido a deixar seu comentário. Abraço, Aldo

Às vezes

Às Vezes


Às vezes,
minhas palavras não são capazes de traduzir com clareza tudo em que penso,
aquilo que sinto
e menos ainda o quê me vai na alma...
Às vezes,
meus pensamentos correm rápidos demais e não consigo acompanhá-los,
meu coração bate rápido demais,
como se desejasse fugir de dentro de mim,
ganhar independência, vida própria.
Às vezes, é minha alma que deseja correr,
partir para longe,
longe desse coração que sente e se ressente,
longe desse corpo que envelhece e se condói,
longe desses tantos pensamentos conflitantes,
longe dessas palavras que se perdem em enganos grosseiros
longe de tudo que macule o amor puro e branco
que minha alma tem pela vida.

A. Masini


Um mundo novo por detrás das palpebras

Um mundo novo por detrás das palpebras


Te enxergo tão bem quando de olhos fechados
que quando os abro,
nos efemeros instantes que ainda dura o lume do seu sorriso,
um mundo novo se descortina diante minha retina.
Nele, tudo é mais vivo
tudo é mais iluminado
tudo é mais colorido.
E minha vida,
a que ainda restou dentro de mim
me diz que esse bocado de existência,
sensivel apenas por suspiros
ou lágrimas fugidias desses mesmos olhos quando ha mais tempo abertos,
pode valer a pena
se o piscar dos meus olhos for mais lento, mais freguente
porque só quando os fecho
consigo observar o que há dentro de mim,
no centro do que sou.
Lá, você ainda permanece a mesma,
que um dia por mim também se apaixonou.

A. Masini


Apartados (antes mesmo de unidos)

Aparados



De onde vem esse seu poder de transformar meus dias? De reunir cada uma das nuvens escuras de chuva e fazê-las dissipar, para em seguida, surgir o sol, iluminando cada canto escuro de minha alma atormentada?

De onde vem esse encanto, que me faz depositar cada uma das minhas esperanças nos sonhos que seus sorrisos me promovem?

De onde vem esse sentimento que me invade os olhos, corre por minhas veias, toma meu corpo e se instala em festa em meu coração a cada oportunidade que tenho de te ver?

Que coro angelical é esse que canta pra mim sempre que te ouço?

Que mulher é você, que parece ter sido feita sob medida para meus abraços, beijos e carinhos?

Que vida afinal é essa, que apesar dessas tantas coisas que me põem na sua direção, ainda assim nos manteve apartados de tudo isso?



A. Masini